Walter Benjamin
A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica
A obra de arte, por princípio, foi sempre suscetível de reprodução. O que alguns homens fizeram podia ser refeito por outros. Assistiu-se, em todos os tempos, a discípulos copiarem obras de arte, a título de exercício, os mestres reproduzirem-nas a fim de garantir a sua difusão e os falsários imitá-las com o fim de extrair proveito material. As técnicas de reprodução são, todavia, um fenómeno novo, de fato, que nasceu e se desenvolveu no curso da história, mediante saltos sucessivos, separados por longos intervalos, mas num ritmo cada vez mais rápido. Os gregos só conheciam dois processos técnicos de reprodução: a Fundição e a cunhagem. Os bronzes, as terracotas e as moedas foram as únicas obras de arte que eles puderam reproduzir em série. As demais apenas comportavam um único exemplar e não serviam a nenhuma técnica de reprodução. Com a gravura na madeira, conseguiu-se. pela primeira vez, a reprodução do desenho, muito tempo antes de a imprensa permitir a multiplicação da escrita. Sabe-se das imensas transformações introduzidas na literatura devido à tipografia, pela reprodução técnica da escrita. Qualquer que seja a sua importância excepcional, essa descoberta é somente um aspecto isolado do fenômeno geral que aqui encaramos ao nível da história mundial. A própria Idade Média viria aduzir, à madeira, o cobre e a água-forte e, o início do século XIX. a litografia. Com a litografia, as técnicas de reprodução marcaram um progresso decisivo. Esse processo, muito mais fiel — que submete o desenho à pedra calcária, em vez de entalhá-lo na madeira ou de gravá-lo no metal permite pela primeira vez às artes gráficas não apenas entregar-se ao comércio das reproduções em série, mas produzir, diariamente, obras novas. Assim, doravante, pôde o desenho ilustrar a atualidade cotidiana. E nisso ele tornou-se íntimo colaborador da imprensa. Porém, decorridas apenas algumas dezenas de anos após essa descoberta, a fotografia viria a suplantá-lo em tal papel. Com ela, pela primeira vez, no tocante à reprodução de imagens, a mão encontrou-se demitida das tarefas artísticas essenciais que, daí em diante, foram reservadas ao olho fixo sobre a objetiva. Como, todavia, o olho capta mais rapidamente do que a mão ao desenhar, a reprodução das imagens, a partir de então, pôde se concretizar num ritmo tão acelerado que chegou a seguir a própria cadência das palavras. O fotógrafo, graças aos aparelhos rotativos, fixa as imagens no estúdio de modo tão veloz como o que o ator enuncia as palavras. A litografia abria perspectivas para o jornal ilustrado; a fotografia já continha o germe do cinema falado. No fim do século passado, atacava-se o problema colocado pela reprodução dos sons. Todos esses esforços convergentes facultavam prever uma situação assim caracterizada por Valéry: "Tal como a água, o gás e a corrente elétrica vêm de longe para as nossas casas, atender às nossas necessidades por meio de um esforço quase nulo, assim seremos alimentados de imagens visuais e auditivas, passíveis de surgir e desaparecer ao menor gesto, quase que a um sinal".1 Com o advento do século XX, as técnicas de reprodução atingiram tal nível que, em decorrência, ficaram em condições não apenas de se dedicar a todas as obras de arte do assado e de modificar de modo bem profundo os seus meios de influência, mas de elas próprias se imporem, como formas originais de arte. Com respeito a isso, nada é mais esclarecedor do que o critério pelo qual duas de suas manifestações diferentes — a reprodução da obra de arte e a arte cinematográfica — reagiram sobre as formas tradicionais de arte. À mais perfeita reprodução falta sempre algo: o hic et nunc da obra de arte, a unidade de sua presença no próprio local onde se encontra. E a esta presença, única no entanto, e só a ela que se acha vinculada toda a sua história. Falando de história, lembramo-nos também das alterações materiais que a obra pode sofrer de acordo com a sucessão de seus possuidores.2 O vestígio das alterações materiais só fica desvendado em virtude das análises físico-químicas, impossíveis de serem feitas numa reprodução; a fim de determinar as sucessivas mãos pelas quais passou a obra, deve-se seguir toda uma tradição, a partir do próprio local onde foi criada. O hic et nunc do original constitui aquilo que se chama de sua autenticidade. Para se estabelecer a autenticidade de um bronze, torna-se, às vezes, necessário recorrer a análises químicas da sua pátina; para demonstrar a autenticidade de um manuscrito medieval é preciso, às vezes, determinar a sua real proveniência de um depósito de arquivos do século XV. A própria noção de autenticidade não tem sentido para uma reprodução, seja técnica ou não.3 Mas, diante da reprodução feita pela mão do homem e, em princípio, considerada como uma falsificação, o original mantém a plena autoridade; não ocorre o mesmo no que concerne a reprodução técnica. E isto por dois motivos. De um lado, a reprodução técnica está mais independente do original. No caso da fotografia, é capaz de ressaltar aspectos do original que escapam ao olho e são apenas passíveis de serem apreendidos por uma objetiva que se desloque livremente a fim de obter diversos ângulos de visão; graças a métodos como a ampliação ou a desaceleração, pode-se atingir a realidades ignoradas pela visão natural. Ao mesmo tempo, a técnica pode levar a reprodução de situações, onde o próprio original jamais seria encontrado. Sob a forma de fotografia ou de disco permite sobretudo a maior aproximação da obra ao espectador ou ao ouvinte. A catedral abandona sua localização real a fim de se situar no estúdio de um amador; o musicômano pode escutar a domicílio o coro executado numa sala de concerto ou ao ar livre. Pode ser que as novas condições assim criadas pelas técnicas de reprodução, em paralelo, deixem intacto o conteúdo da obra de arte; mas, de qualquer maneira, desvalorizam seu hic et nunc. Acontece o mesmo, sem dúvida, com outras coisas além da obra de arte, por exemplo, com a paisagem representada na película cinematográfica; porém, quando se trata da obra de arte, tal desvalorização atinge-a no ponto mais sensível, onde ela é vulnerável como não o são os objetos naturais: em sua autenticidade. O que caracteriza a autenticidade de uma coisa é tudo aquilo que ela contém e é originalmente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico. Como este próprio testemunho baseia-se naquela duração, na hipótese da reprodução, onde o primeiro elemento (duração) escapa aos homens, o segundo — o testemunho histórico da coisa fica identicamente abalado. Nada demais certamente, mas o que fica assim abalado é a própria autoridade da coisa.4 Poder-se-ia resumir todas essas falhas, recorrendo-se á noção de aura, e dizer: na época das técnicas de reprodução, o que é atingido na obra de arte é a sua aura. Esse processo tem valor de sintoma, sua significação vai além do terreno da arte. Seria impossível dizer, de modo geral, que as técnicas de reprodução separaram o objeto reproduzido do âmbito da tradição. Multiplicando as cópias, elas transformam o evento produzido apenas uma vez num fenômeno de massas. Permitindo ao objeto reproduzido oferecer-se à visão e à audição, em quaisquer circunstâncias, conferem-lhe atualidade permanente. Esses dois processos conduzem a um abalo considerável da realidade transmitida — a um abalo da tradição, que se constitui na contrapartida da crise por que passa a humanidade e a sua renovação Estão em estreita correlação com os movimentos de massa hoje produzidos. Seu agente mais eficaz é o cinema. Mesmo considerado sob forma mais positiva — e até precisamente sob essa forma — não se pode apreendera significação social do cinema, caso seja negligenciado o seu aspecto destrutivo e catártico: a liquidação do elemento tradicional dentro da herança cultural. Tal fenómeno é peculiarmente sensível nos grandes filmes históricos e quando Abel Gance, em 1927, bradava com entusiasmo: aguardam sua ressurreição luminosa e os heróis se empurram diante das nossas portas para entrar"5 É aos objetos históricos que aplicaríamos mais amplamente essa noção de aura, porém. para melhor elucidação, seria necessário considerar a aura de um objeto natural. Poder-se-ia defini-la como a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que esteja. Num fim de tarde de verão, caso se siga com os olhos uma linha de montanhas ao longo do horizonte ou a de um galho, cuja sombra pousa sobre o nosso estado contemplativo, sente-se a aura dessas montanhas, desse galho. Tal evocação permite entender, sem dificuldades, os fatores sociais que provocaram a decadência atual da aura. Liga-se ela a duas circunstâncias. uma e outra correlatas com o papel crescente desempenhado pelas massas na vida presente. Encontramos hoje, com efeito, dentro das massas, duas tendências igualmente fortes: exigem um lado, que as coisas se lhe tornem, tanto humana como espacialmente, "mais próximas" 6, de outro lado, acolhendo as reproduções, tendem a depreciar o caráter daquilo que é dado apenas uma vez. Dia a dia, impõe-se gradativamente a necessidade de assumir o domínio mais próximo possível do objeto, através de sua imagem e, mais ainda, em sua cópia ou reprodução. A reprodução do objeto, tal como a fornecem o jornal ilustrado e a revista semanal, é incontestavelmente uma coisa bem diversa de uma imagem. A imagem associa de modo bem estreito as duas feições da obra de arte: a sua unidade e a duração; ao passo que a foto da atualidade, as duas feições opostas: aquelas de uma realidade fugidia e que se pode reproduzir indefinidamente. Despojar o objeto de seu véu, destruir a sua aura, eis o que assinala de imediato a presença de uma percepção, tão atenta àquilo que "se repete identicamente pelo mundo", que, graças à reprodução, consegue até estandardizar aquilo que existe uma só vez. Afirma-se assim, no terreno intuitivo, um fenômeno análogo àquele que, no plano da teoria, é representado pela importância crescente da estatística. O alinhamento da realidade pelas massas, o alinhamento conexo das massas pela realidade, constituem um processo de alcance indefinido, tanto para o pensamento. como para a intuição. A unicidade da obra de arte não difere de sua integração nesse conjunto de afinidades que se denomina tradição. Sem dúvida, a própria tradição é uma realidade bem viva e extremamente mutável. Uma estátua antiga de Vênus, por exemplo, pertencia a complexos tradicionais diversos, entre os gregos que dela faziam objeto de culto e os clérigos da Idade Média, que a encaravam como um ídolo maléfico. Restava, contudo, entre essas duas perspectivas opostas, um elemento comum: gregos e medievais tomavam em conta essa Vênus pelo que ela encerrava de único, sentiam a sua aura. No começo, era o culto que exprimia a incorporação da obra de arte num conjunto de relações tradicionais. Sabe-se que as obras de arte mais antigas nasceram a serviço de um ritual, primeiro mágico, depois religioso. Então, trata-se de um fato de importância decisiva a perda necessária de sua aura, quando, na obra de arte, não resta mais nenhum vestígio de sua função ritualística.7 Em outras palavras: o valor de unicidade, típica da obra de arte autêntica, funda-se sobre esse ritual que, de início, foi o suporte do seu velho valor utilitário. Qualquer que seja o número de intermediários, essa ligação fundamental é ainda reconhecível — tal como um ritual secularizado — através do culto dedicado á beleza, mesmo sob as formas mais profanas.8 Aparecido na época da Renascença, esse culto da beleza, predominante no decorrer de três séculos, guarda hoje a marca reconhecível dessa origem, a despeito do primeiro abalo grave que sofreu desde então. Quando surgiu a primeira técnica de reprodução verdadeiramente revolucionária a fotografia, que é contemporânea dos primórdios do socialismo os artistas pressentiram a aproximação de uma crise que ninguém — cem anos depois poderá negar. Eles reagiram, professando "a arte pela arte", ou seja, uma teologia da arte. Essa doutrina da qual, em primeiro lugar, Mallarmé deveria extrair todas as conseqüências no âmbito literário — conduzia diretamente a uma teologia negativa: terminava-se, efetivamente, por conceber uma arte pura, que recusa, não apenas desempenhar qualquer papel essencial. mas até submeter-se as condições sempre impostas por uma matéria objetiva. A fim de se estudar a obra de arte na época das técnicas de reprodução. É preciso levar na maior conta esse conjunto de relações. Elas colocam em evidência um fato verdadeiramente decisivo e o qual vemos aqui aparecer pela primeira vez na história do mundo: a emancipação da obra de arte com relação à existência parasitária que lhe era imposta pelo seu papel ritualístico. Reproduzem-se cada vez mais obras de arte, que foram feitas justamente para serem reproduzidas.9 Da chapa fotográfica pode-se tirar um grande número de provas; seria absurdo indagar qual delas é a autêntica. Mas, desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística, toda a função da arte fica subvertida. Em lugar de se basear sobre o ritual, ela se funda, doravante, sobre uma outra forma de praxis: a política. Caso se considerem os diversos modos pelos quais uma obra de arte pode ser acolhida, a ênfase é dada, ora sobre um fator, ora sobre outro. Entre esses fatores existem dois que se opõem diametralmente: o valor da obra como objeto de culto e o seu valor como realidade exibível.10 A produção artística inicia-se mediante imagens que servem ao culto. Pode-se admitir que a própria presença dessas imagens tem mais importância do que o fato de serem vistas. O alce que o homem figura sobre as paredes de uma gruta, na idade da pedra, consiste num instrumento mágico. Ele está, sem dúvida, exposto aos olhos de outros homens. Porém antes de tudo — é aos espíritos que ele se endereça. Mais tarde, é precisamente esse valor de culto como tal que impele a manter a obra de arte em segredo; algumas estátuas de deuses só são acessíveis ao sacerdote, na cella. Algumas virgens permanecem cobertas durante quase o ano inteiro, algumas esculturas de catedrais góticas são invisíveis, quando olhadas do solo. Na medida em que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, as ocasiões de serem expostas tomam-se mais numerosas. Um busto pode ser enviado para aqui ou para lá; torna-se mais exibível, em conseqüência, do que uma estátua de um deus, com seu lugar delimitado ao interior de um templo. O quadro é mais exibível do que o mosaico ou o afresco que lhe precederam. E se se admite que, em princípio, a missa foi tão exibível quanto a sinfonia, esta última, entretanto, apareceu num tempo em que se poderia prever que ela seria mais fácil de apresentar do que a missa. As diversas técnicas de reprodução reforçaram esse aspecto em tais proporções que, mediante um fenômeno análogo ao produzido nas origens, o deslocamento quantitativo entre as duas formas de valor, típicas da obra de arte, transformou-se numa modificação qualitativa, que afeta a sua própria natureza. Originariamente. a preponderância absoluta do valor de culto fez — antes de tudo —um instrumento mágico da obra de arte, a qual só viria a ser — até determinado ponto reconhecida mais tarde como tal. Do mesmo modo, hoje a preponderância absoluta do seu valor de exibição confere-lhe funções inteiramente novas, entre as quais aquela de que temos consciência — a função artística poderia aparecer como acessória11. É certo que, a partir do presente, a fotografia e, mais ainda, o cinema testemunham de modo bastante claro nesse sentido. Com a fotografia, o valor de exibição começa a empurrar o valor de culto — em todos os sentidos — para segundo plano. Este último, todavia, não cede sem resistência — sua trincheira final é o rosto humano. Não se trata, de forma alguma, de um acaso se o retrato desempenhou papel central nos primeiros tempos da fotografia. Dentro do culto da recordação dedicada aos seres queridos, afastados ou desaparecidos, o valor de culto da imagem encontra o seu último refúgio. Na expressão fugitiva de um rosto de homem, as fotos antigas, por última vez, substituem a aura. E o que lhes confere essa beleza melancólica, incomparável com qualquer outra. Mas, desde que o homem está ausente da fotografia, o valor de exibição sobrepõe-se decididamente ao valor de culto. A importância excepcional dos clichés, tomados por Atget, no século XIX, nas ruas vazias de Paris, existe justamente porque ele fixou localmente essa evolução. Declarou-se, com razão, que ele fotografou essas ruas tal como se fotografa o local de um crime. O local de um crime também é deserto — o cliché que dele se tira não tem outro objetivo senão o de descerrar os indícios. Para a evolução, aqueles legados por Atget constituem verdadeiras peças de convicção. Assim sendo, eles têm uma significação política secreta. Já exigem serem acolhidos num certo sentido. Não se prestam mais a uma consideração isolada. Inquietam aquele que os olha: a fim de captá-los, o espectador prevê que lhe é necessário seguir um determinado caminho. Ao mesmo tempo, os jornais ilustrados começam a se apresentar a ele como indicadores de itinerário. Verdadeiros ou falsos, pouco importa. Com esse gênero de fotos, a legenda tornou-se, pela primeira vez, necessária. E tais legendas detêm, evidentemente, um caráter bem diverso do título de um quadro. As orientações que o texto dos jornais ilustrados impõe àqueles que olham as imagens far-se-ão logo ainda mais precisas e imperativas mediante o advento do filme, onde, pelo visto, não se pode captar nenhuma imagem isolada sem se levar em conta a sucessão de todas as que a precedem. A polêmica que se desenvolveu no decurso do século XIX, entre os pintores e os fotógrafos, quanto ao valor respectivo de suas obras, dá-nos hoje a impressão de responder a um falso problema e de se basear numa confusão. Longe de, nisso, contestar a sua importância, tal circunstância só faz enfatizá-la. Essa polêmica traduzia de fato uma perturbação de significado histórico na estrutura do universo e nenhum dos dois grupos adversários teve consciência dela. Despregada de suas bases ritualísticas pelas técnicas de reprodução, a arte, em decorrência, não mais podia manter seus aspectos de independência. Mas o século que assistia a essa evolução foi incapaz de perceber a alteração funcional que ela gerava para a arte. E tal conseqüência, até durante longo tempo, escapou ao século XX. que, no entanto, viu o cinema nascer e se desenvolver. Gastaram-se vãs sutilezas a fim de se decidir se a fotografia era ou não arte. porém não se indagou antes se essa própria invenção não transformaria o caráter geral da arte; os teóricos do cinema sucumbiriam no mesmo erro. Contudo, os problemas que a fotografia colocara para a estética tradicional não eram mais que brincadeiras infantis em comparação com aqueles que o filme iria levantar. Daí, essa violência cega que caracteriza os primeiros teóricos do cinema. Abel Gance, por exemplo, compara o filme à escritura hieroglífica: No cinema, é menos importante o intérprete apresentar ao público uma outra personagem do que apresentar-se a s próprio. Pirandello foi um dos primeiros a sentir essa modificação que se impõe ao ator: a experiência do teste. O fato de se limitarem a sublinhar o aspecto negativo da coisa não elimina em quase nada o valor de suas observações que podem ser lidas em seu romance: Si Gira. Menos ainda o fato de aí se tratar apenas do filme mudo, pois o cinema falado, no tocante a isso, não traz nenhuma modificação fundamental: Como notou Pirandello, o intérprete do filme sente-se estranho frente à sua própria imagem que lhe apresenta a câmara. De início, tal sentimento se parece com o de todas as pessoas, quando se olham no espelho. Mas, daí em diante, a sua imagem no espelho separa-se do indivíduo e toma-se transportável. E aonde a levam? Para o público.19 Trata-se de um fato do qual o ator cinematográfico permanece sempre consciente. Diante do aparelho registrador, sabe que — em última instância — e com o público que tem de se comunicar. Nesse mercado dentro do qual não vende apenas a sua força de trabalho, mas também a sua pele e seus cabelos, seu coração e seus rins, quando encerra um determinado trabalho ele fica nas mesmas condições de qualquer produto fabricado. Esta é, sem dúvida, uma das causas da opressão que o domina, diante do aparelho, dessa forma nova de angústia assinalada por Pirandello. Na medida em que restringe o papel da aura, o cinema constrói artificialmente, fora do estúdio, a "personalidade do ator"; o culto do astro, que favorece ao capitalismo dos produtores e cuja magia é garantida pela personalidade que, já de há muito, reduziu-se ao encanto corrompido de seu valor de mercadoria. Enquanto o capitalismo conduz o jogo, o único serviço que se deve esperar do cinema em favor da revolução é o fato de ele permitir uma crítica revolucionária das concepções antigas de arte. Não contestamos, entretanto, que, em certos casos particulares, possa ir ainda mais longe e venha a favorecer uma crítica revolucionária das relações sociais, quiçá do próprio princípio da propriedade. Mas isso não traduz o objeto principal do nosso estudo nem a contribuição essencial da produção cinematográfica na Europa Ocidental. A técnica do cinema assemelha-se àquela do esporte, no sentido de que todos os espectadores são, nos dois casos, semi-especialistas. Basta, para isso ficar convincente, haver escutado algum dia um grupo de jovens vendedores de jornais que) apoiados sobre suas bicicletas, comentam os resultados de uma competição de ciclismo. Não é sem razão que os editores de jornais organizam competições reservadas a seus empregados jovens. Tais corridas despertam um imenso interesse entre aqueles que delas participam, pois o vencedor tem a oportunidade de deixar a venda de jornais pela situação de corredor profissional. De modo idêntico, graças aos filmes de atualidades, qualquer pessoa tem a sua chance de aparecer na tela. Pode ser mesmo que venha a ocasião de aparecer numa verdadeira obra de arte, como Tri Pesni o Leninie (Três Cânticos a Lenin), de Vertov, ou numa fita de Joris Ivens. Não há ninguém hoje em dia afastado da pretensão de ser filmado e, a fim de melhor entender essa pretensão, vale considerar a situação atual dos escritores. Durante séculos, um pequeno número de escritores encontrava-se em confronto com vários milhares de leitores. No fim do século passado, a situação mudou. Mediante a ampliação da imprensa, que colocava sempre à disposição do público novos órgãos políticos, religiosos, científicos, profissionais, regionais, viu-se um número crescente de leitores — de início, ocasionalmente — desinteressar-se dos escritores. A coisa começou quando os jornais abriram suas colunas a um "correio dos leitores" e, daí em diante, inexiste hoje em dia qualquer europeu, seja qual for a sua ocupação, que, em princípio, não tenha a garantia de uma tribuna para narrar a sua experiência profissional, expor suas queixas, publicar uma reportagem ou algum estudo do mesmo gênero. Entre o autor e o público, a diferença, portanto, está em vias de se tornar cada vez menos fundamental. Ela é apenas funcional e pode variar segundo as circunstâncias. Com a especialização crescente do trabalho, cada indivíduo, mal ou bem, está fadado a se tomar um perito em sua matéria, seja ela de somenos importância; e tal qualificação confere-lhe uma dada autoridade. Na União Soviética, até o trabalho tem voz; e a sua representação verbal constitui uma parte do poder requisitada pelo seu próprio exercício. A competência literária não mais se baseia sobre formação especializada, mas sobre uma multiplicidade de técnicas e, assim, ela se transforma num bem comum.20 Tudo isso aplica-se ao cinema sem reservas, onde os deslocamentos de perspectiva, que exigiram séculos no campo literário, realizaram-se em dez anos. Pois, na prática cinematográfica sobretudo na Rússia — a evolução já está parcialmente consumada. Inúmeros intérpretes do cinema soviético não são mais atores dentro da acepção da palavra, e sim pessoas que desempenham o seu próprio papel, mormente em sua atividade profissional. Na Europa Ocidental, a exploração capitalista da indústria cinematográfica recusa-se a satisfazer as pretensões do homem contemporâneo de ver a sua imagem reproduzida. Dentro dessas condições, os produtores de filmes têm interesse em estimular a atenção das massas para representações ilusórias e espetáculos equívocos. A confecção de um filme, sobretudo quando é falado, propicia um espetáculo impossível de se imaginar antigamente. Representa um conjunto de atividades impossível de ser encarado sob qualquer perspectiva, sem que se imponham à vista todas as espécies de elementos estranhos ao desenrolar da ação: máquinas de filmar, aparelhos de iluminação, estado-maior de assistentes, etc. (para que o espectador abstraísse isso, era necessário que o seu olho se confundisse com a objetiva da câmara). Mais do que qualquer outra, essa circunstância toma superficiais e sem importância todas as analogias que se poderiam erguer entre a filmagem de uma cena em estúdio e a sua execução no teatro. Por princípio, o teatro conhece o local onde basta se situar a fim de que o espetáculo funcione. Nada disso existe num estúdio cinematográfico. O filme só atua em segundo grau, uma vez que se procede à montagem das seqüências. Em outras palavras: o aparelho, no estúdio, penetrou tão profundamente na própria realidade que, a fim de conferir-lhe a sua pureza, a fim de despojá-la deste corpo estranho no qual se constitui — dentro dela — o mesmo aparelho, deve-se recorrer a um conjunto de processos peculiares: variação de ângulos de tomadas, montagem, agrupando várias seqüências de imagens do mesmo tipo. A realidade despojada do que lhe acrescenta o aparelho tomou-se aqui a mais artificial de todas e, no país da técnica, a apreensão imediata da realidade como tal é, em decorrência, uma flor azul. Essa situação do cinema, opondo-se nitidamente à do teatro, leva a conclusões ainda mais fecundas, caso a comparemos com a da pintura. Cabe aqui indagar qual é a relação entre o operador e o pintor. A fim de responder, permita-se-nos recorrer a uma comparação esclarecedora, extraída da própria idéia de operação, tal como é empregada na cirurgia. No mundo operatório, o cirurgião e o curandeiro ocupam os dois pólos opostos. O modo de agir do curandeiro que cura um doente mediante a atuação das mãos, difere daquele do cirurgião que pratica uma intervenção. O curandeiro conserva a distância natural existente entre ele e o paciente, ou — melhor dizendo se ele a diminui um pouco — devido à atuação das mãos — aumenta-a bastante por causa de sua autoridade. O cirurgião, pelo contrário, a diminui consideravelmente, porque intervém no interior do doente, mas só aumenta-a um pouco, graças à prudência com que a sua mão se move pelo corpo do paciente. Em suma: ao contrário do curandeiro (do qual restam alguns traços no prático), o cirurgião, no momento decisivo, renuncia a se comportar face ao doente de acordo com uma relação de homem a homem; e sobretudo através de modo operatório que ele penetra no doente. Entre o pintor e o filmador encontramos a mesma relação existente entre o curandeiro e o cirurgião. O primeiro, pintando, observa uma distância natural entre a realidade dada e ele próprio; o filmador penetra em profundidade na própria estrutura do dado.21 As imagens que cada um obtém diferem extraordinariamente. A do pintor é global, a do fumador divide-se num grande número de partes, onde cada qual obedece a suas leis próprias. Para o homem hodierno, a imagem do real fornecida pelo cinema é infinitamente mais significativa, pois se ela atinge esse aspecto das coisas que escapa a qualquer instrumento — o que se trata de exigência legítima de toda obra de arte — ela só o consegue exatamente porque utiliza instrumentos destinados a penetrar, do modo mais intensivo, no coração da realidade. As técnicas de reprodução aplicadas à obra de arte modificam a atitude da massa com relação à arte. Muito retrógrada face a um Picasso, essa massa torna-se bastante progressista diante de um Chaplin, por exemplo. O caráter de um comportamento progressista cinge-se a que o prazer do espectador e a correspondente experiência vivida ligam-se, de maneira direta e íntima, à atitude do aficionado. Essa ligação tem uma determinada importância social. Na medida em que diminui a significação social de uma arte, assiste-se, no público, a um divórcio crescente entre o espírito crítico e o sentimento de fruição. Desfruta-se do que é convencional, sem criticá-lo; o que é verdadeiramente novo, critica-se a contragosto. No cinema, o público não separa a crítica da fruição. Mais do que em qualquer outra parte, o elemento decisivo aqui é que as reações individuais, cujo conjunto constitui a reação maciça do público, ficam determinadas desde o começo pela virtualidade imediata de seu caráter coletivo. Ao mesmo tempo que se manifestam, essas reações se controlam mutuamente. Ainda aqui o contraste com a pintura é bem significativo. Os quadros nunca pretenderam ser contemplados por mais de um espectador ou, então, por pequeno número deles. O fato de que, a partir do século XIX, tiveram a permissão de serem mostrados a um público considerável corresponde a um primeiro sintoma dessa crise não apenas desfechada pela invenção da fotografia, mas, de modo relativamente independente de tal descoberta, pela intenção da obra de arte de se endereçar às massas. Ora, é exatamente contrário à própria essência da pintura que ela se possa oferecer a uma receptividade coletiva, como sempre foi o caso da arquitetura e, durante algum tempo, da poesia épica, e como é o caso atual do cinema. Ainda que não se possa quase extrair qualquer conclusão no tocante ao papel social da pintura, é certo que no momento paira um sério inconveniente pelo qual a pintura, em virtude de circunstâncias especiais, e de modo que contradiz sua natureza ate certo ponto, fica diretamente confrontada com as massas. Nas igrejas e claustros da Idade Média ou nas cortes dos príncipes até por volta dos fins do século XVIII, a acolhida feita ás pinturas não tinha nada de semelhante; elas só se transmitiam através de um grande número de intermediários hierarquizados. A mudança que interveio com relação a isso traduz o conflito peculiar, dentro do qual a pintura se encontra engajada, devido às técnicas de reprodução aplicadas à imagem. Poder-se-ia tentar apresentá-la às massas nos museus e nas exposições, porém as massas não poderiam, elas mesmas, nem organizar nem controlar a sua própria acolhida.22 Por isso, exatamente, o mesmo público que em presença de um filme burlesco reage de maneira progressista viria a acolher o surrealismo com espírito reacionário. O que caracteriza o cinema não é apenas o modo pelo qual o homem se apresenta ao aparelho, é também a maneira pela qual, graças a esse aparelho, ele representa para si o mundo que o rodeia. Um exame da psicologia da performance mostrou-nos que o aparelho pode desempenhar um papel de teste. Um olhar sobre a psicanálise nos fornecerá um outro exemplo. De fato, o cinema enriqueceu a nossa atenção através de métodos que vêm esclarecer a análise freudiana. Há cinqüenta anos, não se prestava quase atenção a um lapso ocorrido no desenrolar de uma conversa. A capacidade desse lapso de, num só lance, abrir perspectivas profundas sobre uma conversa que parecia decorrer do modo mais normal, era encarada, talvez, como uma simples anomalia. Porém, depois de Psychopathologie des Allagslebens (Psicopatologia da Vida Cotidiana), as coisas mudaram muito. Ao mesmo tempo que as isolava, o método de Freud facultava a análise de realidades, até então, inadvertidamente perdidas no vasto fluxo das coisas percebidas. Alargando o mundo dos objetos dos quais tomamos conhecimento, tanto no sentido visual como no auditivo, o cinema acarretou, em conseqüência, um aprofundamento da percepção. E é em decorrência disso que as suas realizações podem ser analisadas de forma bem mais exata e com número bem maior de perspectivas do que aquelas oferecidas pelo teatro ou a pintura. Com relação à pintura, a superioridade do cinema se justifica naquilo que lhe permite melhor analisar o conteúdo. dos filmes e pelo fato de fornecer ele, assim, um levantamento da realidade incomparavelmente mais preciso. Com relação ao teatro, porque é capaz de isolar número bem maior de elementos constituintes. Esse fato e é daí que provém a sua importância capital — tende a favorecer a mútua compenetração da arte e da ciência. Na realidade, quando se considera uma estrutura perfeitamente ajustada ao âmago de determinada situação (como o músculo no corpo), não se pode estipular se a coesão refere-se principalmente ao seu valor artístico, ou à exploração científica passível de ser concretizada. Graças ao cinema — e aí está uma das suas funções revolucionárias pode-se reconhecer, doravante, a identidade entre o aspecto artístico da fotografia e o seu uso científico, até então amiúde divergentes.23 Procedendo ao levantamento das realidades através de seus primeiros planos que também sublinham os detalhes ocultos nos acessórios familiares, perscrutando as ambiências banais sob a direção engenhosa da objetiva, se o cinema, de um lado, nos faz enxergar melhor as necessidades dominantes sobre nossa vida, consegue, de outro, abrir imenso campo de ação do qual não suspeitávamos. Os bares e as ruas de nossas grandes cidades, nossos gabinetes e aposentos mobiliados, as estações e usinas pareciam aprisionar-nos sem esperança de libertação. Então veio o cinema e, graças à dinâmica de seus décimos de segundo, destruiu esse universo concentracionário, se bem que agora abandonados no meio dos seus restos projetados ao longe, passemos a empreender viagens aventurosas. Graças ao primeiro plano, é o espaço que se alarga; graças ao ralenti, é o movimento que assume novas dimensões. Tal como o engrandecimento das coisas — cujo objetivo não é apenas tomar mais claro aquilo que sem ele seria confuso, mas de desvendar novas estruturas da matéria — o raíenti não confere simplesmente relevo às formas do movimento já conhecidas por nós, mas, sim, descobre nelas outras formas, totalmente desconhecidas, "que não representam de modo algum o retardamento de movimentos rápidos e geram, mais do que isso, o efeito de movimentos escorregadios, aéreos e supraterrestres".24 Fica bem claro, em conseqüência, que a natureza que fala à câmara é completamente diversa da que fala aos olhos, mormente porque ela substitui o espaço onde o homem age conscientemente por um outro onde sua ação é inconsciente. Se é banal analisar, pelo menos globalmente, a maneira de andar dos homens, nada se sabe com certeza de seu estar durante a fração de segundo em que estica o passo. Conhecemos em bruto o gesto que fazemos para apanhar um fuzil ou uma colher, mas ignoramos quase todo o jogo que se desenrola realmente entre a mão e o metal, e com mais forte razão ainda devido às alterações introduzidas nesses gestos pelas flutuações de nossos diversos estados de espírito. É nesse terreno que penetra a câmara, com todos os seus recursos auxiliares de imergir e de emergir, seus cortes e seus isolamentos, suas extensões do campo e suas acelerações, seus engrandecimentos e suas reduções. Ela nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente visual, assim como a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente instintivo. Sempre foi uma das tarefas essenciais da arte a de suscitar determinada indagação num tempo ainda não maduro para que se recebesse plena resposta.25 A história de cada forma de arte comporia épocas críticas, onde ela tende a produzir efeitos que só podem ser livremente obtidos em decorrência de modificação do nível técnico, quer dizer, mediante uma nova forma de arte. Daí porque as extravagâncias e exageros que manifestam nos períodos de suposta decadência nascem, na verdade, daquilo que constitui, no âmago da arte, o mais rico centro de forças. Ainda bem recentemente vimos os dadaístas a se comprazerem com manifestações bárbaras. Só hoje compreendemos o que visava esse esforço: o dadaísmo buscava produzir, através da pintura (ou da literatura), os próprios efeitos que o público hoje solicita do cinema. Cada vez que surge uma indagação fundamentalmente nova abrindo o futuro aos nossos olhos, ela ultrapassa seu propósito. Isso foi tão verdadeiro no caso dos dadaístas que, em favor das intenções — das quais não estavam, evidentemente, tão conscientes dentro da forma que descrevemos — eles sacrificaram os valores comerciais que assumiram, desde então, importância tão grande para o cinema. Os dadaístas davam muito menos valor à utilização mercantil de suas obras do que ao fato de que não se podia fazer delas objetos de contemplação. Um de seus métodos mais habituais para atingir esse objeto foi o aviltamento sistemático da própria matéria de suas obras. Seus poemas são saladas de palavras, contêm obscenidades e tudo que se possa imaginar de detritos verbais. Igualmente os seus quadros, sobre os quais eles colavam botões e bilhetes de passagens de ônibus, trens, etc. Chegaram ao ponto de privar radicalmente de qualquer aura as produções às quais infligiam o estigma da reprodução. Diante de um quadro de Arp ou de um poema de Stramm, não se tem — como diante de uma tela de Deram ou um poema de Rilke — o lazer da concentração para fazer um julgamento. Para uma burguesia degenerada, o reentrar em si mesmo tornou-se uma escola de comportamento associal; com o dadaísmo, a diversão tornou-se um exercício de comportamento social.26 Suas manifestações, com efeito, produziram uma divergência muito violenta, fazendo-se da obra de arte um objeto de escândalo. O intento era, antes de tudo, chocar a opinião pública. De espetáculo atraente para o olho e de sonoridade sedutora para o ouvido, a obra de arte, mediante o dadaísmo, transformou-se em choque. Ela feria o espectador ou o ouvinte; adquiriu poder traumatizante. E, dentro disso, favoreceu o gosto pelo cinema, que também possui um caráter de diversionismo pelos choques provocados no espectador devido às mudanças de lugares e de ambientes. Pensar em toda a diferença que separa a tela na qual se desenrola o filme e a tela onde se fixa a pintura! A pintura convida à contemplação; em sua presença, as pessoas se entregam à associação de idéias. Nada disso ocorre no cinema; mal o olho capta uma imagem, esta já cede lugar a outra e o olho jamais consegue se fixar. Mesmo detestando o cinema e nada entendendo do seu significado, Duhamel percebeu bem vários aspectos de sua estrutura e enfatiza isto quando escreve: "Já não posso meditar no que vejo. As imagens em movimento substituem os meus próprios pensamentos".27 De fato, a sucessão de imagens impede qualquer associação no espírito do espectador. Daí é que vem a sua influência traumatizante; como tudo que choca, o filme somente pode ser apreendido mediante um esforço maior de atenção.28 Mediante a sua técnica, o cinema libertou o efeito de choque físico daquela ganga moral, onde o dadaísmo o havia encerrado de certa forma.29 A massa é matriz de onde emana, no momento atual, todo um conjunto de atitudes novas com relação à arte. A quantidade tornou-se qualidade. O crescimento maciço do número de participantes transformou o seu modo de participação. O observador não deve se iludir com o fato de tal participação surgir, a princípio, sob forma depreciada. Muitos, no entanto, são aqueles que, não havendo ainda ultrapassado esse aspecto superficial das coisas, denunciaram-na vigorosamente. As críticas de Duhamel são as mais radicais. O que ele conserva do filme é o modo de participação que o cinema desperta nos espectadores. Assim diz: Mas o homem que se diverte pode também assimilar hábitos; diga-se mais: e claro que ele não pode efetuar determinadas atribuições, num estado de distração, a não ser que elas se lhe tenham tornado habituais. Por essa espécie de divertimento, pelo qual ela tem o objetivo de nos instigar, a arte nos confirma tacitamente que o nosso modo de percepção está hoje apto a responder a novas tarefas. E como, não obstante, o indivíduo alimenta a tentação de recusar essas tarefas, a arte se entrega àquelas que são mais difíceis e importantes, desde que possa mobilizar as massas. E o que ela faz agora, graças ao cinema. Essa forma de acolhida pela seara da diversão, cada vez mais sensível nos dias de hoje, em todos os campos da arte, e que é também sintoma de modificações importantes quanto à maneira de percepção, encontrou, no cinema, o seu melhor terreno de experiência. Através do seu efeito de choque, o filme corresponde a essa forma de acolhida. Se ele deixa em segundo plano o valor de culto da arte, não é apenas porque transforma cada espectador em aficionado, mas porque a atitude desse aficionado não é produto de nenhum esforço de atenção. O público das salas obscuras é bem um examinador, porém um examinador que se distrai. A proletarização crescente do homem contemporâneo e a importância cada vez maior das massas constituem dois aspectos do mesmo processo histórico. O fascismo queria organizar as massas, sem mexer no regime da propriedade, o qual, todavia, elas tendem a rejeitar. Ele pensava solucionar o problema, permitindo às massas, não certamente fazer valer seus direitos, mas exprimi-los.31 As massas têm o direito de exigir uma transformação do regime da propriedade; o fascismo quer permitir-lhes que se exprimam, porém conservando o regime. O resultado é que ele tende naturalmente a uma estetização da vida política. A essa violência que se faz às massas, quando se lhes impõe o culto de um chefe, corresponde a violência sofrida por uma aparelhagem, quando a colocam a serviço dessa religião. Todos os esforços para estetizar a política culminam num só ponto: a guerra. A guerra, e só ela, permite fornecer um motivo para os maiores movimentos de massa, sem, assim, tocar-se no estatuto da propriedade. Eis como as coisas podem ser traduzidas em linguagem política. Quanto à linguagem técnica, poderiam ser assim formuladas: só a guerra permite mobilizar todos os recursos técnicos da época presente, sem em nada mudar o regime da propriedade. Evidente que o fascismo, em sua glorificação da guerra, não usa tais argumentos. É, no entanto, bastante instrutivo lançar os olhos sobre os textos que servem a essa glorificação. No manifesto de Marinetti, sobre a guerra da Etiópia, lemos de fato: Notas 1 - Valéry, Pièces sur l' Art, "Conquête de l' Ubiquité", p. 105. 2 - Evidente que a história de uma obra de arte não se limita a esses dois elementos: a da Gioconda, por exemplo, deve também levar em conta a maneira com que a copiaram nos séculos XVII, XVIII e XIX e a quantidade de tais cópias. 3 - É precisamente porque a autenticidade escapa a toda reprodução que o desenvolvimento intensivo de alguns processos técnicos de reprodução permitiram fixar graus e diferenciações dentro da própria autenticidade. Com respeito a isso, o comércio da arte desempenhou papel importante. Mediante a descoberta da gravura em madeira, pode-se dizer que a autenticidade das obras foi atacada na raiz, antes mesmo de atingir um florescer que deveria mais ainda enriquecê-la. Na realidade, na época em que foi feita, uma Virgem da Idade Média ainda não era "autêntica": ela assim se tornou no decorrer dos séculos seguintes, talvez, sobretudo, no século XIX. 4 - A pior representação de Faust, num teatro de província, já é superior a um filme sobre o tema, naquilo que ela, pelo menos, rivaliza com a apresentação oficial de Weimar. Toda a substância tradicional sugerida a nós pelo desempenho dos atores se esvazia, na tela, de todo o valor. 5 - Abel Gance: "Le Temps de l' Image est Venu", (L'art Cinématographique, II, Paris, 1927, pp. 94-96). 6 - Dizer que as coisas se tornam "humanamente mais próximas" pode significar que não se leva mais em conta a sua função social. Nada garante que um retratista contemporâneo — quando representa um cirurgião célebre fazendo uma refeição ou dentro do seu círculo familiar — apreenda mais exatamente a sua função social do que um pintor do século XVI, que, como o Rembrandt, da Lição de Anatomia, apresentava ao público de sua época os médicos no próprio exercício de sua arte. 7 - Ao definir a aura como "a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que ela esteja", nós, simplesmente, fizemos a transposição para as categorias do espaço e do tempo da fórmula que designa o valor do culto da obra de arte. Longínquo opõe-se a próximo. O que está essencialmente longe é inatingível. De fato, a qualidade principal de uma imagem que serve para o culto é de ser inatingível. Devido à sua própria natureza, ela está sempre "longínqua, por mais próxima que possa estar". Pode-se aproximar de sua reaIidade material, mas sem se alcançar o caráter longínquo que ela conserva, a partir de quando aparece. 8 - Na medida em que o valor de culto da imagem se seculariza, representa-se de modo ainda mais indeterminado o substrato do qual ela se faz uma realidade, que é dado apenas uma vez. Cada vez mais, o espectador se inclina a substituir a unicidade dos fenómenos dominantes na imagem de culto pela unicidade empírica do artista e de sua atividade criadora. A substituição nunca é integral, sem dúvida; a noção de autenticidade jamais cessa de se remeter a algo mais do que simples garantia de originalidade (o exemplo mais significativo é aquele do colecionador que se parece sempre com um adorador de fetiches e que, mediante a própria posse da obra de arte, participa de seu poder de culto). Apesar de tudo, o papel do conceito de autenticidade no campo da arte é ambíguo: com a secularização desta última, a autenticidade torna-se o substituto do valor de culto. 9 - De modo diverso do que ocorre, em literatura ou em pintura, a técnica de reprodução não é para o filme uma simples condição exterior a facultar sua difusão maciça; a sua técnica de produção funda diretamente a sua técnica de reprodução. Ela não apenas permite. de modo mais imediato, a difusão maciça do filme, mas exige-a. As despesas de produção são tão altas que impedem ao indivíduo adquirir um filme, como se comprasse um quadro. Os cálculos demonstraram que, em 1927, a amortização de uma grande fita implicava na sua exibição para nove milhões de espectadores. De início, é certo, a invenção do cinema falado diminuiu provisoriamente a difusão dos filmes por causa das fronteiras linguísticas na própria época cm que o fascismo insistia nos interesses nacionais. Essa recessão, em breve atenuada pela dublagem, deve importar-nos menos do que o seu elo com o fascismo. Os dois fenômenos são simultâneos porque estão ligados á crise econômica. As mesmas perturbações que, a grosso modo, conduziram à procura dos meios de garantir, pela força, o estatuto da propriedade, apressaram os capitalistas do cinema a concretizarem o advento do filme falado. Essa descoberta trouxe-lhes um desafogo passageiro, contribuindo para propiciar às massas o gosto pelo cinema e, sobretudo, vinculando os capitais dessa indústria aos novos capitais provenientes da indústria elétrica. Assim, visto de fora, o cinema falado favoreceu aos interesses nacionais, mas, visto de dentro, provocou uma maior internacionalização dos interesses. 10 - O Essa oposição escapa necessariamente a uma estética idealista; a idéia de beleza, desta última, somente admite uma dualidade indeterminada — e, em conseqüência, recusa-se a qualquer decisão. Hegel, no entanto, entreviu o problema, tanto quanto lhe permitia seu idealismo. Disse, em Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte. "As imagens existem já há muito. A piedade sempre as exigia como objetos de devoção, mas não tinha necessidade alguma de imagens belas. A imagem bela contém, assim, um elemento exterior, porém é na medida em que é bela que o seu espírito fala aos homens; ora, com a devoção, trata-se de uma necessidade essencial à existência de uma relação a uma coisa, pois, por si própria, ela não é mais do que o entorpecimento da alma... A Bela Arte ... nasceu dentro da Igreja ... embora a arte já haja emergido do princípio da arte". Uma passagem de Vorlesungen über die Aesthetik indica igualmente que Hegel pressentia a existência do problema: "Não estamos mais no tempo em que se rendia um culto divino às obras de arte, onde se podia dedicar-lhes preces; a impressão que elas nos transmitem é mais discreta e a sua capacidade de emocionar ainda requer uma pedra de toque de ordem superior". A passagem do primeiro modo para o segundo condiciona em geral todo processo histórico da receptividade às obras de arte. Quando se está desprevenido, fica-se por princípio, e a cada obra particular, condenado a oscilar entre esses dois meios opostos. Após os trabalhos de Hubert Grimm, sabe-se que a Virgem de São Sisto foi pintada para fins de exposição. Grimm indagava-se a respeito da função da tira de madeira, que no primeiro plano do quadro, servia de apoio a duas figuras de anjos; perguntava-se o que poderia ter levado um pintor como Rafael a fazer com que o céu pairasse sobre dois suportes. Sua pesquisa revelou-lhe que essa Virgem havia sido encomendada para o sepultamento solene do papa. Essa cerimônia desenrolou-se numa capela lateral à igreja de São Pedro. O quadro estava instalado no fundo da capela, que formava uma espécie de nicho, Rafael representou a Virgem, por assim dizer, saindo daquele nicho, delimitado por suportes verdes, afim de avançar, sobre as nuvens, em direção do caixão pontifical. Destinado para os funerais do papa. o quadro de Rafael, antes de tudo, possuía um valor de exposição. Pouco mais tarde, dependuraram-no sobre o altar-mor da igreja dos monges negros em Plaisance. O motivo desse exílio foi que o ritual romano proibia a veneração num altar-mor de imagens expostas no decorrer de funerais. Tal prescrição tirou um pouco do valor comercial desta obra de Rafael. A fim de, no entanto, vendê-la pelo seu valor, a Cúria resolveu tolerar tacitamente que os compradores pudessem expô-la num altar-mor. Como não se desejava a repercussão do fato, enviou-se o quadro a uns frades, numa província afastada. 11 - Em nível diverso, Brecht apresenta considerações análogas: "Desde que a obra de arte se torna mercadoria, essa noção (de obra de arte) já não se lhe pode mais ser aplicada; assim sendo, devemos, com prudência e precaução — mas sem receio renunciar à noção de obra de arte, caso desejemos preservar sua função dentro da própria coisa como tal designada. Trata-se de uma fase necessária de ser atravessada sem dissimuIações; essa virada não é gratuita, ela conduz a uma transformação fundamental do objeto e que apaga seu passado a tal ponto. que. caso a nova noção deva reencontrar seu uso — e por que não? não evocará mais qualquer das lembranças vinculadas á sua antiga significação". 12 - Abel Gance, loc. cit., p. 100 s. 13 - Séverin Mars, citado por Abel Gance, loc. cit., p. 100. 14 - Alexandre Arnoux, Cinéma, Paris, 1929, p. 28. 15 - Franz Werfel: "Ein Sommernachtstraum", Neues Wiener Journal, nov. 1935. 16 - "O filme... propicia (poderia propiciar), até no detalhe, conclusões úteis a respeito das condutas humanas. A partir do caráter de um homem não se pode deduzir nenhum dos seus motivos de comportamento, a vida interior das pessoas nunca é essencial e, raramente, ela consiste no resultado mais importante de suas condutas" (Brecht, Versuche, Der Dreigroschenoperprozess). Ampliando o campo do teste, o papel dos aparelhos, na representação dos filmes, desempenha, para o indivíduo, uma função análoga àquela do conjunto de circunstâncias econômicas que aumentaram de modo extraordinário os terrenos onde ele pode ser testado. Verifica-se, assim, que os testes de orientação profissional, dia a dia, ganham mais importância. Consistem num determinado número de decupagens das performances do indivíduo. Tomadas cinematográficas, provas de orientação profissional, ambas se desenvolvem diante de um areópago de técnicos. O diretor de montagem encontra-se em seu estúdio exatamente na mesma situação que o controlador de testes, por ocasião do exame de orientação profissional. 17 - Luigi Pirandello, On Tourne, citado por Léon Pierre-Quint, "Signitication du Cinéma" (L"Art Cinématograpique, II, Paris, 1927, pp. 14 s.). 18 - Rudolt Arnheim: Film als Kunst, Berlim 1932, pp. 176 s. Dentro dessa perspectiva. certas particularidades aparentemente secundárias, que distinguem a direção cinematográfica e o experimento teatral, tornam-se mais interessantes, entre outras, a tentativa de alguns diretores — Dreyer em sua Jeanne d' Arc — de suprimir a maquilagem dos atores. Dreyerr demorou meses para conseguir reunir os quarenta intérpretes que deveriam representar os juízes no processo da inquisição. Sua busca parecia a procura de acessórios difíceis de serem obtidos. Dreyer empreendeu os maiores esforços a fim de evitar que houvesse entre esses intérpretes a menor semelhança de idade, de estatura e de fisionomia. Quando o ator se torna acessório da cena, não é raro que, em decorrência, os próprios acessórios desempenhem o papel de atores. Pelo menos não é insólito que o filme lhes tenha um papel a confiar. Em vez de invocar quaisquer exemplos extraídos da grande massa daqueles que se apresentam, fixemo-nos em um, especialmente ilustrativo. A presença no palco de um relógio cm funcionamento seria sempre inútil. Inexiste lugar no teatro para a sua função que é a de marcar o tempo. Mesmo numa peça realista, o tempo astronômico estaria em discordância com o tempo cênico. Nessas condições,é da maior importância para o cinema poder dispor de um relógio a fim de assinalar o tempo real. Esse e um dos dados que melhor indicam que, numa circunstância determinada, cada acessório pode desempenhar um papel decisivo. Estamos aqui bem próximos da afirmação de Pudovikin, segundo a qual "o desempenho de um ator, vinculado a um objeto e dependente deste .... sempre constitui um dos mais poderosos recursos de que dispõe o cinema". O filme, então, é o primeiro meio artístico capaz de mostrar a reciprocidade de ação entre a matéria e o homem. Nesse sentido, ele pode servir com muita eficácia a um pensamento materialista. 19 - Pode-se constatar, no plano político, uma mudança análoga no modo de exposição e que — de forma idêntica depende das técnicas de reprodução. A crise atual das democracias burguesas está vinculada a uma crise das condições que determinam a própria apresentação dos governantes. As democracias apresentam seus governantes de modo direto, em carne e osso, diante dos deputados. O parlamento constitui o seu público. Com a evolução dos aparelhos, que permite a um número indefinido de ouvintes escutar o discurso do orador, no próprio momento em que ele fala, e de, pouco depois, difundir a sua imagem a uma quantidade indefinida de espectadores, o essencial se transforma na apresentação do homem político diante do aparelho em si. Essa nova técnica esvazia os parlamentas, assim como esvazia os teatros. O rádio e o cinema não modificam apenas a função do ator profissional, mas — de maneira semelhante — a de qualquer um, como o caso do governante, que se apresente diante do microfone ou da câmara. Levando-se em conta a diferença de objetivos, o intérprete de um filme e o estadista sofrem transformações paralelas com relação a isso. Elas conseguem, em determinadas condições sociais, aproximá-los do público. Daí a existência de uma nova seleção, diante do aparelho: os que saem vencedores são a vedete e o ditador. 20 – O caráter privilegiado das técnicas correspondentes fica assim, arruinado. Aldous Huxley escreveu: "Os progressos técnicos. . . conduziram à vulgarização. .. As técnicas de reprodução e o uso das rotativas dos jornais permitiram uma multiplicação da imagem e da escrita que ultrapassa todas as previsões. A instrução obrigatória e o relativo aumento de níveis de vida criaram um público muito grande, capaz de ler e se valer da leitura e das imagens. A fim de satisfazer a tal demanda, foi necessário organizar uma indústria importante. Mas o dom artístico é uma coisa rara; resulta disso... que por todos os lados a produção artística, em sua grande parte, foi de pouco valor. Mas, hoje, a percentagem de fracassos, no conjunto da produção estética, ainda é maior do que nunca... Trata-se, aí, de um simples problema aritmético. No decorrer do século passado, a população da Europa Ocidental cresceu além do dobro, porém, no que é possível calcular o material de leitura e de imagens aumentou, no mínimo, de um para dez, talvez, de um para cinqüenta ou cem. Se se admite que uma população de x milhões de habitantes comporta um número n de pessoas dotadas artisticamente, os talentos serão de 2n para uma população de 2x milhões. Pode-se assim resumir a situação: onde, há cem anos, publicava-se uma página impressa, com texto ou imagens, publicam-se, hoje, vinte, senão cem. Onde, por outro lado, existia um talento artístico, existem, hoje, dois. Admito que, em conseqüência do ensino obrigatório, um grande número de talentos virtuais, outrora impedidos de desenvolver os seus dons, pode hoje se expressar. Suponhamos, por conseguinte,... que hoje existam três ou mesmo quatro talentos para cada um de outrora. De qualquer forma, o consumo de textos e de imagens superou a produção normal de escritores e desenhistas bem dotados. Ocorre o mesmo no terreno dos sons. A prosperidade, o gramofone e o rádio criaram um público cujo consumo de bens audíveis está desproporcional com o crescimento da população e, em decorrência, com o número de músicas de talento. Desse modo, em todas as artes, seja em números absolutos ou em valores relativos, a produção de fracassos é mais intensa do que outrora; e assim o será enquanto as pessoas continuarem a consumir, desmedidamente, textos, imagens e discos". É claro que o ponto de vista aqui expresso nada tem de progressista. 21 - As dificuldades do filmador são, com efeito, comparáveis àquelas do cirurgião. Caracterizam os movimentos de mão cuja técnica pertence especificamente ao âmbito do gesto. Luc Durtain fala daqueles que exigem, na cirurgia, algumas invenções difíceis. Toma, por exemplo, um caso específico, extraído da otorrinolaringologia, chamado de método perspectivo endonasal. Refere-se igualmente às verdadeiras acrobacias impostas ao cirurgião da laringe, pelo fato de ser obrigado a utilizar um espelho, onde a imagem se lhe apresenta ao inverso. Assinala também o trabalho de precisão requerido pela cirurgia do ouvido, que é comparável ao de um relojoeiro. O cirurgião deve exercitar os seus músculos até um grau extremo de precisão acrobática, quando vai consertar ou salvar o corpo humano. Basta pensar, lembra-nos Durtain, na operação de catarata, onde o aço do bisturi deve porfiar com tecidos quase fluídos, ou ainda nas importantes intervenções na região inguinal (laparatomia). 22 – Esse modo de considerar as coisas pode parecer grosseiro. Mas, como o demonstra o exemplo do grande teórico Leonardo Da Vinci, observações dessa natureza podem ser adequadas a seu tempo. Comparando música e pintura, diz Leonardo: "A superioridade da pintura sobre a música existe pelo fato de que, a partir do momento em que ela é convocada para viver, inexiste motivo para que venha a morrer, como ao contrário, é o caso da pobre música... A música se evapora depois de ser tocada; perenizada pelo uso do verniz, a pintura subsiste". 23 – Com relação a isso, a pintura da Renascença fornece-nos analogia bem instrutiva. Nela também encontramos uma arte, cujo desenvolvimento e importância incomparáveis baseiam-se, em grande parte, sobre o fato de que ela integra um grande número de ciências novas, ou, no mínimo, novos dados extraídos dessas ciências. Reivindica a anatomia e a perspectiva, as matemáticas. a meteorologia e a teoria das cores. Como Valéry fez observar, nada está mais distante de nós do que essa surpreendente pretensão de um Leonardo, que via na pintura a meta suprema e a mais elevada demonstração de saber, pois estava convencido de que ela requeria a ciência universal e ele próprio não recuava diante de uma análise teórica, cuja precisão e profundidade desconcertam-nos hoje em dia. 24 – RudolfArnheim, Ioc. cit., p. 138. 25 – Segundo André Breton, a obra de arte só tem valor na medida em que agita os reflexos do futuro. De fato, toda forma de arte acabada situa-se no cruzamento de três linhas evolutivas. Em primeiro lugar, ela elabora a técnica que a si própria convêm. Antes do cinema, havia essas coleções de fotos que, sob a pressão do polegar, sucediam-se rapidamente diante dos olhos e que conferiam a visão de uma luta de boxe ou de um jogo de tênis: vendiam-se nas lojas uns brinquedos automáticos, onde o desenrolar das imagens era provocado pela rotação de uma manivela. Em segundo lugar, ela elabora as formas de arte tradicionais, nos diversos estágios de seu desenvolvimento, com o objetivo de aplicá-las nos efeitos que, em seguida, serão desembaraçadamente visados pela forma nova de arte. Antes de o filme ser aceito, os dadaístas, através de suas manifestações, procuravam introduzir junto ao público um movimento, o qual Chaplin, logo após, viria a ensejar de modo mais natural. Em terceiro lugar, ela prepara, de maneira amiúde invisível, as modificações sociais, transformando os métodos de acolhida a fim de adaptá-los às formas novas de arte. Antes de o cinema haver começado a formar o seu público, já outro público se reunia no Panorama Imperial, a fim de ver as imagens (que já haviam deixado de ser imóveis). Este público achava-se defronte de um biombo, onde estereoscópios estavam instalados, cada um deles voltado para um dos espectadores. Diante desses aparelhos surgiam automaticamente imagens sucessivas que se demoravam um instante e logo davam lugar a outra seguinte. Foi ainda com meios análogos que Edison exibiu a pequeno grupo de espectadores a primeira película filmada (antes que se descobrisse a tela e a projeção); o público olhava com estupor o aparelho, dentro do qual se desenrolavam as imagens. A princípio, o espetáculo apresentado no Panorama Imperial traduzia de maneira especialmente clara uma dialética do desenvolvimento. Pouco tempo antes do cinema permitir uma visão coletiva das imagens, graças a esse sistema de estereoscópio, logo caído de moda, o que ainda prevaleceu foi a visão individual, com a mesma força da contemplação da imagem divina feita por um padre numa cela. 26 – O arquétipo teológico desse auto-recolhimento consiste na consciência do estar a sós com Deus. Nas grandes épocas da burguesia, essa consciência tornou o homem suficientemente forte para sacudir a tutela da Igreja; na época de sua decadência, a mesma consciência deveria favorecer, quanto ao indivíduo, uma tendência secreta de privar a comunidade das forças que ele aciona em sua relação pessoal com seu Deus. 27 – Duhamel, Scènes de la Vie Future, Paris, 1930, p. 52. 28 – O cinema é a forma de arte que corresponde à vida cada vez mais perigosa, destinada ao homem de hoje. A necessidade de se submeter a efeitos de choque constitui uma adaptação do homem aos perigos que o ameaçam. O cinema equivale a modificações profundas no aparelho perceptivo, aquelas mesmas que vivem atualmente, no curso da existência privada, o primeiro transeunte surgido numa rua de grande cidade e, no curso da história, qualquer cidadão de um Estado contemporâneo. 29 – Se o cinema se descerra, à luz do dadaísmo, também o faz de modo substancial, à luz do cubismo e do futurismo. Esses dois movimentos aparecem como tentativas insuficientes da arte a fim de assimilar, à maneira deles, a intrusão dos aparelhos dentro da realidade. Contrariamente ao cinema, eles não utilizaram esses aparelhos para conferir uma representação artística do real: ambos, sobretudo, aliaram a representação do real àquela da aparelhagem. Assim se explica o papel preponderante que desempenham, no cubismo o pressentimento de uma construção dessa aparelhagem, repousando sobre um efeito ótico e, no futurismo, o pressentimento do efeito dessa aparelhagem, tal como o cinema os valorizaria, graças ao projetar rápido da película. 30 – Duhamel, loc. cit., p. 58. 31 – Deve-se ressaltar aqui com referência em especial aos jornais cinematográficos. cujo valor de propaganda não pode ser subestimado — uma circunstância técnica de particular importância. A reprodução em massa, corresponde efetivamente uma reprodução de massas. Nos grandes cortejos de festas, nos meetings gigantescos, nas manifestações desportivas, que conjugam massas inteiras, na guerra enfim, quer dizer, em todas as ocasiões onde intervém a câmara, hoje em dia, a massa pode ver a si mesma, cara a cara. Esse processo, do qual é desnecessário enfatizar a importância, está ligado estreitamente com o desenvolvimento das técnicas de reprodução e de gravação. De modo geral, o aparelho capta os movimentos de massa melhor do que o olho humano. Os quadros de centenas de milhares de homens só são bem apreendidos através de relances. E se o olho humano pode apreendê-los tão bem quanto o aparelho não pode ampliar, como o faz este último, a imagem que se lhe oferece. Em outras palavras: os movimentos de massa, e nisto também a guerra, representam uma forma de comportamento humano que corresponde, de forma totalmente especial, à técnica dos aparelhos. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, pp. 55-95. |
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