8 de fev. de 2012

O Olho da Rua (1)




Um blog de um morador de rua é como um manuscrito da senzala:
a versão dos vencidos, aquela a que nunca temos acesso,
pois eles não têm escrita nem instrumentos para registrar sua História.

Em 2005, um amigo antropólogo, David Soares, me chamou para fotografar um casal que vivia na rua. Um deles ia voltar para sua cidade de
origem e tentar se reintegrar à família. Queriam levar a lembrança um
do outro. Estavam apaixonados. E muito. Ela chorou durante a sessão de
fotos.


Eu, não só os fotografei, como ficamos amigos. Como tudo que toco se
transforma em blog, ofereci meus préstimos, quando percebi que se
tratada de um morador de rua muito especial.


Ele ia visitar-me em meu trabalho levando seus textos para o blog,
todos escritos a mão e com excelente caligrafia. Eu fotografava os
textos, digitava-os e postava, feliz. Eu tinha consciência deste
presente do David e da importância desse garimpo.

As fotos, não posso postar, são dele, do "maloqueiro".
Na época, eu trabalhava as fotos no photoshop com ele ao lado,
palpitando. Juntei filmes e fotos, coloquei num CD e dei pra ele,
claro. As fotos do blog não são minhas.


Não o vi mais, provavelmente está muito melhor.
Ela, eu a vi na rua há alguns anos atrás, depois mudei de rumos.
Um dia nos reencontraremos.

Seguem os textos do "maloqueiro", na íntegra, e algumas imagens o
leitor pode encontrar no
www.oolhodarua.zip.net




São palavras dele:

"Esmiuçar tragicômico do cotidiano de pessoas
que residem e sobrevivem nas ruas".

"Aqui você saberá como é possível resistir sem o social,
o ético, o básico e outros que tais".

"Não precisa esconder a carteira: eu não vou pedir trocados.
Desarme-se, relaxe e tente me ver como um ser (como você) somente.




21-11-05

Gostaria de explicar a função deste blog e a escolha do meu
pseudônimo, maloqueiro. Trata-se de uma referência, o esmiuçar do
tragicômico cotidiano de pessoas que residem e sobrevivem nas ruas. Do
tipo que certamente você vê por todos os cantos da sua cidade, e
sempre os teve como fantasmas algo indesejáveis a assombrar o brilho
dela ou até como seres carentes da mais nobre fraternidade humana. Não
importa. Aqui você saberá como é possível resistir sem o social, o
ético, o básico e outros que tais.


Eu precisarei, ao te conduzir neste caminho (só explorado por quem a
ele é condenado) traduzir usos (gírias e expressões típicas), situá-lo
nos vários grupos existentes (pois mesmo na sub-sociedade há muita
variedade) e nos ambientes inerentes como albergues, malocas (uma
célula ou versão diminuta de uma favela), bocas de rango (locais
geralmente religiosos, onde são servidas refeições gratuitas) e outros
tais.


Contudo, creio que de início é preciso explicar a palavra central:
maloqueiro. Na capital paulista, é assim que as pessoas “normais” se
referem ao falar de necessitados em geral (inclusive os que possuem um
lar bem pobre e continuam na miséria). No Rio de Janeiro há
preferência pelo termo “mendigo”, e no Rio Grande do Sul, sua-se
“esmoleiro”.


Sempre teremos um derradeiro fiapo de esperança. E, sim, você matou a
charada: eu sou das ruas. Eu vivo nelas há cinco, seis anos. Tenho
conhecimento de causa, não sou um observador, um amigo, simpatizante,
jornalista ou representante de ONG que relataria o que lhe contam.
Não. Apesar de eu ter óbvias discrepâncias em função do maior número
deles, eu faço parte desse caldo, estou nele até o pescoço. Mas terei
tempo para falar de mim, de como sucede a transição do mundo para o
sub-mundo, e de dezenas com os quais convivi, sofri, reparti, até
esqueci...


Faz-se necessário destacar o quanto eu ainda me mantinha arredio a
estreitar a distância íntima daqueles que me cercavam. Talvez, em
certa medida, parte dessa recusa se mantém até hoje. Eu era um deles.
Não integralmente, pois continuava algo inatingível com respostas
monossilábicas, expressão pouco convidativa, e timidez exacerbada.
Mesmo que houvesse precisão, eu não falaria nada. Eu temia que o meu
objetivo de sair dali o mais rápido possível pudesse ser maculado.
Parecia sentir o poder de influência degenerardora de condutas tão
radicais para minha percepção familiar. Meu dissabor era a expectativa
de que aconteceria, sumariamente, um ponto de convergência qualquer,
alguém assumiria a função de Ponte da Amizade entre mim e aquele
caudaloso e movediço riacho de sensações. E todo “mistério” traz
atração e tende a aumentar o interesse por seus detalhes.


Na rua, todas as personalidades são marcantes, atuantes (dentro de sua
disposição). É preciso “demarcar território”, controlar
conscientemente todo o tipo de exposição e evidência, buscando
equilíbrio entre o que esperam de nós e aquilo que estamos propensos a
entregar. Aqui, eu me refiro ao nível psicológico, pois obviamente
este controle não é possível nos demais campos. Ainda que agindo quase
como se não estivesse no meio, eu temia que isso pudesse atrair mais
do que o planejado.


Essa questão não era regida pelo preconceito. O caso não era aceitar
me “rebaixar” para aquela condição. Os pontos maiores de aversão eram
o medo do desconhecido, a lembrança, ainda recente, do mundo “normal”,
e o receio de que minha tendência à aventura, leia-se erro, me
pendessem para ainda mais longe. Eu ainda me sentia como a pessoa que
transitava na calçada do outro lado da rua, olhando, com pena e
apreensão, para os “mendingos” aglomerados embaixo do viaduto. Eu
havia cruzado a barreira. Eu estava materializado ao lado deles, mas a
minha psique seguia transitando fantasma entre os “comuns”. E esse
espectro, ainda muito me assombraria, só que agora eu me tornara
merecedor, receptor do mesmo tipo de olhar que antes portava...

Eu relutava em comer em público, ao ar livre. Incomodavam-me os
olhares curiosos, os sorrisos sarcásticos, e os julgamentos alheios.


Eu não era um derrotado, apenas havia derrapado um tanto, pensava
comigo. Não admitia o embate comum das aglomerações. Se houvesse de
comer, conseguiria na disciplina. Não me permitia implorar, eu não
estava na Etiópia afinal, aquela cena não parecia real. E existia
certa redundância dos que distribuíam alimentos, que intuíam que
maloqueiro de verdade deveria estar sujo, abatido, surrado para ser
digno de ajuda. As poucas vezes, nesse período inicial, em que fui
pressionado pela fome a entrar na fila, eu me via obrigado a ouvir:
“Sinto muito, mas é só para quem mora na rua!”. E o fato de ter que
reafirmar uma posição em que eu não queria estar me fazia desistir. A
negativa soava como uma penitência, uma cobrança, tipo: “quem mandou
você precisar?”.

Eu retrocedia, pois não conseguia destravar sequer
meus obstáculos internos. Eu me sentia culpado pelo meu destino.
No entanto, a questão era somente estética. Aquelas pessoas não vinham
para julgar nossos atos passados, apenas seguiam o conceito arraigado
na miséria. Grande parte dos que ali estavam, encaixavam-se no perfil
“adequado” (até para não correr o risco da recusa). Minha aparência
fazia com que eu não merecesse apoio. Inconscientemente, a opção
preferida visa ajudar aqueles que ostentam sinais aberrantes de
descaso próprio e, portanto, mais distantes de uma recuperação
completa em detrimento dos que se apresentavam mais dispostos e
preparados para uma ascensão. Do ponto de vista do auxiliador, é mais
compensador estender a mão para o maloqueiro interino do que para o
temporário. E, quem diria, tornamo-nos nós, os asseados, alvos de
preconceito. Tanto dos doadores, como dos optantes pela sujeira. “O
cara é maloqueiro e quer andar todo limpinho? Ele qué sê playboy!”.


Tudo em nossas vidas passa a ser condicionado pela subsistência. A
pessoa passa a ritualizar as suas refeições como doses diárias de
intervenção divina,  símbolo de protelação, de continuidade. Se, por
vezes, amaldiçoamos o grilhão dessa busca incontornável, sentimos cada
dia vivido como um ato heróico, um milagre improvável.

Não nos é permitido escolher ou rejeitar nada segundo nossas
preferências. Não é aconselhável que se discuta sobre a qualidade,
proveniência ou mesmo a higiene dos produtos consumidos. E se estiver
vencido? “Manda pra dentro, amigo. O que não mata engorda!” – seria a
resposta.


O capricho, o carinho ou o desprezo nutrido por nós fica implícito nas
refeições oferecidas pelos doadores. Lamentável é o pensamento de
alguns que crêem que devido à carência, somos obrigados a ingerir o
pior possível, o inumano, e, ainda por cima, sermos gratos.

A prática da boa ação enfrenta a indisciplina e ousadia de maloqueiros
enérgicos que desejam sempre os primeiros e escarnecem a
funcionalidade da fila. Geralmente irascíveis e alterados, não é a
fome que os move, mas a necessidade de se afirmarem como os “mais
fortes”. Os humildes ou “otários”, como pensam os primeiros, várias
vezes amargam ficar sem nada quando chega sua vez. Neste universo, a
ética da sobrevivência aponta constantemente para o extrapolo de
qualquer direito igualitário.


Mesmo com poucos dias de estadia em meio à “plebe”, eu já começava a
derrubar mitos antigos que carregava sobre as relações humanas em
condições de pressão. A decepção mais visível para mim foi descobrir
que não havia união de qualquer espécie entre os necessitados. A
impressão que se tem quando somos observados apenas, é de que o peso e
a dureza das inúmeras formas de privação a que ficamos expostos
deveria gerar pendores de comunidade, de irmandade. Quem está fora nos
vê talvez como membros de uma grande família. Ao aproximar a lupa,
porém, não é definitivamente o que se verifica.


O ser humano mantém a inveja, a competição injusta e o desejo de
superioridade mais nefasto frente a qualquer situação. Ser o “azarão”
não impõe humildade alguma nas relações, e os espíritos seguem para
longe de qualquer tipo de bom-senso. O maloqueiro não se enxerga
integrante de um círculo, ele é o centro. Por pena de si, por zelo de
sua individualidade ou por pura pretensão, seus atos sempre são
baseados no proveito exclusivo. E se, por ventura, age de modo mais
humano, logo será tolhido e rejeitado, não só em seu círculo
particular, bem como pelo mundo em que vive e aceita esse parâmetro.
Ainda que o underground tenha regras típicas de conduta, a essência é

a mesma encontrada nas elites: todos querem o Poder, sem menção de
risco ou conseqüência, sem visualização do todo, sem interesse no
todo. Resta a impressão de que somos maus em gênero e mais difícil
crer que sejamos a imagem e semelhança do Altíssimo.


"E aí? Cê tá preparado pra deixar de ser gente?".


Eu decidi primeiramente escancarar as portas de um albergue e o
convívio dentro dele por razões simples: eles são objetivamente o
aparelho público diretamente destinado a fracassados em geral e
simbolizam nosso “estágio” para uma total atuação “profissional” nas
ruas. O albergue funciona como um laboratório onde se testa o que deve
e o que não pode; um workshop que desfila os personagens mais
incríveis em meio a uma massa humana insana pelo descaso (próprio e
alheio); um purgatório ou a ante-sala do inferno.

É ali que fazemos nossas derradeiras tentativas de manter nossa
civilidade intacta, de agarrarmos as barras das calças de uma
sociedade que já nos esqueceu.

Albergues são abrigos mantidos por prefeituras ou estado junto a
parcerias privadas, para sem-tetos/ cheios de vetos / rebelados sem
afeto, etc. Eles podem ter uma localização central da cidade mas, em
sua maioria, existem embaixo de grandes viadutos, pra gente não ter
dúvidas em que nível estamos. Os carrões passam por cima, sem sonhar
com toda a angústia que corrói aqueles pilares enegrecidos.


Atrás das portas dos banheiros aparte os rabiscos pseudo-eróticos
comuns, encontram-se frases como esta: “Fora nordestinos! Vagabundos,
viados, só vem pá São Paulo pá suja tudo! Se mandem” e outras mais ou
menos ignóbeis. Existe uma tendência , na procura cega de uma origem
para o problema, de acreditar que a miséria é fruto exclusivo da
emigração em massa ocorrida em época de grande necessidade de
mão-de-obra braçal na cidade (por meio da qual, aliás, muito dela foi
erguida), e portanto incentivada pelo mesmo poder que hoje busca
situá-los como o cerne da questão. O preconceito vem de cima e
contamina as bases com bem mais do que um racismo burro.


Veja, com o tempo eu descobri que o “autor” desses petardos expostos
em quase todas as portas (não só daquele, como em outros lugares) era
ele, o próprio nordestino! Ele se auto-rotula como uma proto-escória
falida e a partir desta “análise” fica à deriva, na conformidade de
vetor do mal sem nem desconfiar de seu papel real de vítima, de álibi.
Cria-se uma tensão preconceituosa entre as regiões, a ponto de uma
paulista querer agredir um pernambucano, ou um determinado grupo de
nordestinos não aceitar a presença de um sulista em seu círculo porque
é de um Estado bem sucedido e naturalmente então, antagonista de todo
o que julga representar: “facções inimigas?”. Divididas não por poder,
mas justamente pela falta dele e, claro, de bom senso e/ou instrução
também.

A pergunta que fica é: se no passado o trabalho absorvia e se servia
desses desbravadores de terras indômitas, o que os apadrinham agora?
Porquê o êxodo prossegue sem a oferta miraculosa de trabalho? O que a
substituiu? Se no Rio de Janeiro, apolítica é mais voltada para a
expatriação (talvez por seu teor turístico), se São Paulo é a “grande
mãe” que acolhe como nenhuma outra, os números sempre crescentes de
renegados que nela aportam. Ela se especializou na criação de uma
espécie de “indústria da miséria” mas nunca o admitirá oficialmente. O
problema se reflete na constatação de que a eventual turbulência que
põe alguém fora do trilho social, que o faz desembocar nas ruas não é
tão consistente para mantê-lo assim como os processos de escora e
desvio que ele enfrenta depois de estar nessa situação. O grau de
interesse para “correr atrás” de seu melhor, é visivelmente superior
entre moradores de rua do Rio pela ausência de apoio, enquanto Sampa
acumulam-se “parasitas” porque oferece essa opção, produz maiores
facilidades para isso.

Não estou apontando melhor ou pior, o que seria ou não mais eficaz em
política para esse campo, quem sou eu ... só tento aumentar a
compreensão do contexto que nos envolve, para poder me aprofundar no
que, queiramos ou não, interfere e impacta nossas escolhas e relações.


E, mesmo vendo a discrepância dos argumentos à nossa volta, que
ameaçavam nos culpar eternamente, eu intimamente sentia alívio em ser
gaúcho e não nordestino. Esse ar de superioridade foi pulverizado
quando um cearense, irritado ao descobrir minha proveniência com
outros colegas do dormitório, bradou para que fosse possível que eu
ouvisse de meu leito um tanto distante: “se ele fosse tão melhor que a
gente assim, não estaria aqui no meio de nós!”. Ele foi ácido,
atacando uma posição que eu nunca havia tomado, mas que começava a me
seduzir. Preferi retirar da frase apenas sua lição de igualdade e não
rebati.


Algumas pessoas visitam os albergues atrás de profissionais
(pedreiros, pintores, serralheiros, etc, é possível encontrar de
tudo), como nos velhos tempos, embora bem mais raro que aconteça. Essa
informação pode invocar a falsa noção de que isso constitui em boas
oportunidades. Engano. Os que procuram ali, o fazem apenas para que
seja permitido pagar menos do que o normal estipulado à categoria.
Estão em busca de escravos que devem se submeter, se agarrar
desesperadamente naquele aceno de “boa vontade” que lhe sorri e que
serão descartados logo que necessário. Não estou exagerando, somos
vistos como propícios para a prática de toda a sorte de abusos, pois a
falta de proteção de quaisquer direitos como humanos e trabalhistas.
Está implícito em nosso rosto. Por diversas vezes testemunhei o
suspiro de alívio se transformar em soluço nervoso em alguns dias por
causa das condições impostas pelo “patrão”. As vítimas retornavam ao
albergue muitas vezes sem receber. Haviam trabalhado por comida e
pouso, e se deparavam com a angústia de precisarem conquistar suas
vagas perdidas (que poucos não conseguiam), ainda mais desorientados e
sem esperança.


Ao contrário do que se imagina, a maioria possui profissão ou ao menos
experiência em algum ramo. O mesmo não se pode dizer sobre documentos.
Os sucessivos roubos entre maloqueiros (sim, isto acontece) desanimam
as pessoas de retirá-los novamente. Os alcoólatras ao perdem a cada
grande porre e alguns têm o recorde de pedidos de segunda via (dez,
doze vezes em cinco anos!). Sobressai aí o paradoxo de uma pessoa
afirmar com veemência que deseja trabalhar, mas não se preocupar com a
vital documentação.

Um exemplo contundente relativo a esses bicos sinistros: nas cercanias
do albergue do albergue, uma vez por quinzena, um nissei espertalhão e
rotundo estacionava sua Kombi branca e se punha a retrucar com a ajuda
de um lacaio, desocupados que estivessem pela área naquele momento. A
oferta consistia em levá-los até cidades interioranas da divisa de São
Paulo com Minas Gerais (onde o calor humano e ainda puro) e colocá-los
a pedir roupas nas casas, as quais ele pagava dez centavos o quilo ao
pedinte. Ele provia uma alimentação à base de sanduíches e chá o que
punha os famintos a também implorar por comida. Todos pernoitavam na
Kombi fora o “chefe”. Ele cobrava qualquer tipo de gasto excedente
(cigarro, bebida, etc). Assim, a pessoa já devia antes de receber e se
obrigava a esmolar alucinadamente para pagar seus débitos. Havia
poucos audaciosos que tendo já boa prática (já viviam de pedir
invariavelmente), entregavam apenas as roupas, escondendo e revendendo
outras doações. O “japa” como era conhecido, sempre andava com seu 38
na cintura porque não confiava plenamente em seus recrutados e, caso o
sujeito não levasse jeito ou fosse tímido demais para a tarefa, sem
levantar boa quantidade de artigos, ele o abandonava na estrada,
recusava trazê-lo de volta, sem direito a qualquer discussão. O
facínora era dono de três lojas do tipo brechó na Grande São Paulo,
por onde ele repassava cada peça a preço mínimo de cinco reais. E
posso apostar que até hoje, dois anos após a minha saída de Sampa, ele
deve estar praticando essas perversões e não precisará parar nunca, no
que depender de ser acionado por alguma lei. É possível que ele seja
visto por muitos (que nunca foram ou viram) como um exemplo de pessoa
a ajudar e dar uma ocupação aos oprimidos. Não é lindo?

Todo o entorno da Baixada do Glicério me parece um “coração das
trevas”, cravado no centro da cidade, visto que não é propriamente um
bairro. É um vão entre eles escondido por elevados que, estes sim,
desembocam em bairros. A área só é atravessada por quem tem mesmo
algum interesse específico nela e, para o restante não significa mais
que um ponto de passagem. Em seu raio enxergamos a precariedade social
de três fontes: a falta de assistência à saúde, nos pacientes que
buscam atendimento no Posto Médico; as discrepâncias da fé nos
evangélicos que vêem fazer suas orações na sede mundial da Igreja Deus
e Amor, e os exageros e disparates da miséria embaixo dos viadutos.
Estes grupos distintos “colidem”, misturando suas carências,
divulgando suas penitências.

O elevado que encobre o albergue tem um desvio para outra direção,
formando um “V”. Este outro já guarnecera uma enorme favela até anos
antes de minha chegada (... final dos anos 80) a qual o cadafalso fora
um incêndio em um prédio baixo de quatro andares(invadido e
posteriormente doado aos sem-teto) que se alastrou e destruiu quase
todos os barracos, antecipando a ação de despejo forçado, o qual a
prefeitura já tinha em planos devido aos índices de criminalidade e
caos da região.

Quando aportei por ali, final da década de 90, restavam a fama de
“lugar mais perigoso do centro”, muitas lendas dos acontecidos na
saudosa favela (para muitos), o “esqueleto”, apelido carinhoso dado às
ruínas daquele imóvel queimado e cerca de 60 moradores de rua, número
pífio perto dos “áureos tempos”, mas desconcertante para mim. A
construção de barracos não era mais permitida e o “rapa” criou uma
divisão para cuidar apenas das malocas, derrubando e apreendendo tudo
o que pudesse servir a esse propósito. Suas incursões eram quase que
diárias, seus métodos sempre polêmicos ...


O aspecto mais semelhante talvez seja o de um presídio: horários
inflexíveis de entrada e saída, revista pessoal, grades nos
alojamentos, fila pro banho, senha pra janta e, claro, “agentes”,
psicólogos, médicos (esporádicos, uma vez na semana), todos submetidos
ao poder centralizador da assistente social e do diretor do albergue,
e aptos a tornar sua estadia rançosa e pueril.

Tudo bem, não vamos generalizar, há sempre exceções. E por outro lado,
nem todos os maloqueiros são fáceis de ajudar. Mas isto fica pra
depois...

Com o passar dos anos, as coisas melhoraram muito, mas aqui me refiro
ao final da década de 90, onde o que havia era rusticidade para
pessoas rústicas. A higiene do local era péssima, principalmente os
banheiros. Os banhos (na maioria frios) eram tomados à vista de
qualquer um, pois os boxes não possuíam portas. Isto servia aos
propósitos dos funcionários que vigiavam o cumprimento das regras (era
proibido lavar qualquer peça de roupa embaixo do chuveiro) e
controlavam para que o banhista não se prolongasse em demasia.

Os dois únicos chuveiros quentes causavam filas de espera aumentando
sua tensão e pressa. Eu optava pelo frio mesmo. Além de ser bem mais
rápido, o salão onde eles mantinham o refeitório tinha muros baixos,
ou seja, as brisas e rajadas frias no inverno nos atravessando
jantando ou assistindo televisão numa área anexa. Eu entendia que o
calor, e logo após, o frio e o sereno da noite não eram boas
combinações.

Na saída do banheiro era recebido um ticket feito a mão que servia de
senha para a liberação do rango. A imposição do banho era necessária
pois eles sabiam que, livremente, ao menos 50% não o fariam jamais.

A alimentação era um show à parte: insossa, mal-cozida, pouco
temperada e feita com incrível desdém pelas cozinheiras e ajudantes.
Nada poderia ser mais humilhante. (Como que pra equivaler à
precariedade descabida naquele momento). Era imprescindível que se
tivesse muita fome ou não se descia todas as noites, mesmo com
variações nos cardápio.

As camas nos enormes pavilhões de dormitório traziam colchões
finíssimos que permitiam a magrelos como eu sentir cada ripa do
estrado das beliches. Inúmeras e todas numeradas.

Como você deve ter imaginado, os sonhos não eram nada coloridos neste
lugar, Trezentos homens ou mais. Ar viciado, sufocante. Alguns roncos
animalescos, homossexuais despertos piscando no escuro, odores
incógnitas, horário estipulado para levantar. Pessoas difíceis de
lidar. Estressadas. Toda noite seu parceiro e sua beliche trocavam.
Isso ficava condicionado ao seu horário de entrada. Quanto antes, os
leitos “prediletos” estavam disponíveis. No meu caso, eu admitia ser
um dos últimos, em todos os movimentos, eu prezava cada minuto fora
daquela panela de pressão que parecia, em termos, com um campo de
concentração e extermínio moral gradual.

Uma de minhas mágoas com relação ao albergue era que o oferecido me
soava apenas como paliativo: comida, pouso e banho.

Não tínhamos o direito sequer de nos liberarmos de nossos parcos
pertences (que se constituíam nas coisas mais importantes que
tínhamos) porque o maleiro só permanecia aberto durante a noite e,
logo e manhã, por volta das 7:00 (limite máximo para a saída)
estávamos em fila para, ao apresentarmos a senha, recebermos nossa
bagagem completa, se pouca ou demais. Em caso de perda da senha,
faziam com que esperássemos até a sua mala ou equivalente ser a única
restante.

Os funcionários nos despertavam de segunda a segunda pontualmente às
6:30. O café estaria servido das 6:45 às 7:15 (um pão com manteiga e
um copo de café com leite em pó ou quatro rosquinhas glaceadas). No
mais tardar às 7:30, as portas se fechavam atrás, expelindo-nos ao
mundo, meio sonolentos e de mente vazia...

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