27 de ago. de 2012

A ESBOFETEADA



          Virou-se para as coleguinhas:
            Como meu namorado, eu confesso francamente: nunca vi! Tem um gênio! Que gênio!
          Indagaram:
            Feroz? E Ismênia:
            Se é feroz? Puxa! Precisa uns dez para segurar! — Olha para os lados e baixa a voz: — Vocês sabem o que é que ele fez comigo? Não sabem?
            Conta! Ah, conta!
          Ismênia não queria outra coisa. Cercada de amigas interes-sadíssimas, resumiu o episódio.-
            Foi o seguinte: ele cismou que eu tinha dado pelota para o Nemésio. E não conversou: me sentou a mão, direitinho!
            E tu?
          Ergueu o rosto, feliz, envaidecida da bofetada:
            Eu vi estrelas!
          Houve um silêncio e, ao mesmo tempo, um arrepio intenso naquelas meninas. Pareciam ter despeito, inveja, da agressão que a outra sofrerá. Ismênia piscou o olho:
  Eu gosto de homem, homem. Escreveu, não leu, o pau comeu. Senão, não tem graça. Sou assim.

          O VIOLENTO
          Chamava-se Sinval, o namorado de Ismênia. A primeira vista, causava até má impressão. Faltava-lhe a base física da coragem. Era baixo, mirrado, um peito fundo de tísico, braços finos e mãos pequenas, de unhas tratadas. Custava a crer que esse fraco fosse um violento. Todavia, estava lá o testemunho de Ismênia, que, batendo no peito, repetia: "Eu apanhei! Eu!". Acontece que entre as colegas presentes estava Silene, amiga e confidente de Ismênia. E Silene foi justamente a que se impressionou mais com o episódio. Conhecia vagamente Sinval e a sensação que ficara, de sua figura, foi a de um rapaz como há milhares, como há talvez milhões. De repente sabe que esse cavalheiro, de aparência tão insignificante, bate em mulheres. Sem dizer nada a ninguém, experimenta uma crispação de asco e deslumbramento. Mais tarde, em casa, com a mãe e as irmãs, diz o seguinte:
            Eu acho que, se um homem me esbofeteasse, eu dava-lhe um tiro na boca!

          A DOCE PEQUENA
          Mentira. Não daria tiro na boca de ninguém. Impossível desejar-se uma alma mais doce, terna e tão incapaz de violência, de maldade. Mesmo sua exaltação fazia pensar na cólera de um passarinho. Durante três dias, não pensou noutra coisa. E pasmava que Ismênia se vangloriasse da bofetada, como se de uma medalha, uma condecoração. No quarto dia, não resiste. Apanha o telefone e liga para o emprego do Sinval. Queria apenas passar um trote, e nada mais. Do outro lado da linha, porém, Sinval, caridoso, mas irredutível, exigia:
            Se não disser o nome, eu desligo.
          Ia recuar. Mas deu, nela, uma coragem súbita. Identificou-se: "Sou eu, Silene". Arrependeu-se imediatamente depois de ter dito. Tarde, porém. E já Sinval, transfigurado, exclamava:
            Silene? Não é possível, não pode ser!
            Sou, sim. E ele:
            Então houve transmissão de pensamento! No duro que houve! Imagine que eu estava pensando em você, neste minuto! Agora mesmo!
          Foi por aí além. Transpirando de sinceridade, contou que gostava dela em silêncio, há muito tempo. Com o coração disparado, a pequena indaga: "E Ismênia?". Foi quase brutal:
            Ismênia é uma brincadeira, um passatempo, nada mais. Você, não. Você é outra coisa. Diferente!
          Espantada com essa veemência, Silene quis duvidar. Então, emocionado, ele dramatiza:
            Te juro, pela minha mãe, que é a coisa que mais prezo na vida. Te juro que é pura verdade!

          DRAMA
          Silene despediu-se, afinal, com as pernas bambas. O sim pies fato de ter ligado já a envergonhara como uma deslealdade. Afinal, era amiga de Ismênia e... Pior do que tudo, porém, fora identificar-se. Durante o resto do dia, não fez outra coisa senão perguntar, de si para si: "E agora, meu Deus?". No telc fone, aceitara o convite de Sinval para um encontro no dia se guinte. Mas o sentimento de culpa não a largou, senão no mi i mento em que decidiu: "Não vou, pronto. Não vou e está acabado". Mas foi. No dia seguinte, pontualmente, estava no loca! combinado, transida de vergonha. Sinval, num interesse evidente, profundo, foi ainda mais decisivo do que na véspera. Disse coisas deslumbrantes, inclusive, textualmente, o seguinte:
            Te vi, no máximo, umas oito vezes, dez, talvez. Falei contigo pouquíssimo. Mas, assim ou assado, o fato é que te amo, te amo e te amo!

          APAIXONADA
          Ela acreditou. E acreditou porque se passara o mesmo com seu coração. Apaixonara-se, de uma dessas paixões definitivas, reais e mortais. Continuou a encontrar-se com o ser amado, ;ls escondidas. Só não era mais feliz porque pensava na outra. I )c noite, no quarto, especulava:' 'No dia em que Ismênia souber.
          Chegou esse dia. E foi, entre as duas, uma cena desagrada bilíssíma. Sem papas na língua, Ismênia disse-lhe as últimas: "Tu és mais falsa do que Judas!". Branca, o lábio inferior tremendo, Silene sentia-se incapaz de uma reação. A outra terminou, nu ma espécie de maldição:
            Hás de apanhar muito nessa cara!

          CIÚMES
          O incidente foi lamentável por um lado e bom por outro. Lamentável, pelo escândalo, pelo constrangimento. Bom, porque esclareceu de vez a situação. Excluída Ismênia, oficializou-K o romance. Os dois puderam exibir, ostentar, em toda a parte, "imenso carinho em que se consumiam. Começaram a frequentar festas. E, então, surpresa e vagamente inquieta, Silene descobriu o seguinte: Sinval não se incomodava que ela dançasse com indo mundo. Estranhou e passou a interpelar o namorado:
            Você não tem ciúmes de mim?
            Não. Admirou-se:
            Por quê? E ele:
            Porque te amo.
          Devia dar-se por satisfeita. E, no entanto, sua reação foi outra: estava descontente. Dias depois, suspira: "Eu preferia que i nesses ciúmes de mim". Sinval achou graça: "Ué!". Ela, sentindo-se irremediavelmente infantil, repete o que já ouvira, não sei onde: "Sem ciúmes, não há amor!". O rapaz passou-lhe um sermão: "Parece criança!". Até que, certa vez, a garota resolve ii mais longe. Pergunta ousadamente: "E se eu te traísse? Tu falas o quê?". Respondeu, sóbrio:
            Te perdoaria.
            E se eu voltasse a trair? Foi absoluto:
            Se continuasses traindo, eu continuaria perdoando.

          DESFECHO
          Mas este diálogo, imprudente, perturbador, deveria marcá-la e muito. A partir de então, foi outra alma, outra mulher. Era uma menina de modos suaves e bonitos. E, subitamente, passou a chamar a atenção de todo mundo, com atitudes desagráveis, de escândalo. Nas festas, dançava com o rosto colado; E houve um baile em que bebeu tanto que teve que ser carregada, em estado de coma. Por outro lado, torturava o pobre Sinval, desacatando-o na frente de todo mundo. Ele, serenamente, com uma mesura à Luís xv, submetia-se às piores desconsiderações, incapaz de um revide. Até que, numa festa, ela se cansou desse inofensivo. Na sua cólera, humilhou-o:
            Você não é homem! Se fosse homem, eu não faria de gato e sapato!
          Ela bebera, outra vez, além da conta. Talvez por isso ou por outro motivo qualquer, Sinval limitou-se a sugerir: "Vamos, meu anjo?". Mas em casa, sozinha, ela imergia numa ardente meditação. Uma noite, vão a uma outra festa. E lá Silene superou todas as leviandades anteriores. Quase à meia-noite, de braço com o par acidental, vai para o jardim. Sinval espera vinte minutos, meia hora, uma hora. E não se contém mais: vai procurá-la. O par, assim que o viu, pigarreou, levantou-se e desapareceu. Silene ergueu-se também. Com um meio sorriso maligno, anuncia: "Ele me beijou". Sinval não disse uma palavra: derruba a noiva com uma tremenda bofetada. Ela cai longe, com os lábios sangrando. Enquanto ele a contempla e espera, a pequena, de rastros, com a boca torcida, aproxima-se. Está a seus pés. E, súbito, abraça-se às suas pernas, soluçando:
          — Esperei tanto por essa bofetada! Agora eu sei que tu me amas e agora eu sei que posso te amar!
          Passou. Mas nos seus momentos de carinho, e quanto estavam a sós, ela pedia, transfigurada: "Me bate, anda! Me bate!". Foram felicíssimos.

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