23 de mar. de 2012

Voltaire. História das viagens de Scarmentado escrita por ele próprio




Nasci em 1800 na cidade de Cândia, de que meu pai era governador. Lembra-me que um poeta medíocre, e que não era mediocremente duro, compôs uns maus versos em meu louvor, nos quais mefazia descender de Minos em linha reta; mas, tendo meu pai caído em desgraça, fez ele outros versos, onde eu descendia apenas de Pasifaé e seu amante. Mau homem, esse Iro, e o mais aborrecido velhaco de toda a ilha.
Quando completei quinze anos, meu pai mandou-me estudar em Roma. Cheguei na esperança de aprender todas as verdades; pois até então me haviam ensinado exatamente o contrário, conforme é de uso neste mundo, desde a China até os Alpes. Monsignor Profondo, a quem fora recomendado, era um homem singular e um dos mais terríveis sábios que já houve no mundo. Quis ensinar-me as categorias de Aristóteles, e esteve a ponto de me colocar na categoria de seus mignons: escapei-me a tempo. Vi procissões, exorcismos e algumas rapinas. Diziam, mas falsamente, que a signora Olímpia, pessoa de
grande prudência, vendia muita coisa que não se deve vender. Estava eu numa idade em que tudo isso me parecia muito divertido. Uma jovem dama de costumes muito brandos, chamada signora Fatelo, houve por bem amar-me. Era cortejada pelo reverendo padre Poignardini e pelo reverendo padre Acomiti, jovens professores de uma ordem que não mais existe: ela os pôs de acordo, concedendo-me as suas graças; mas ao mesmo tempo corria o risco de ser excomungado e envenenado. De modo que parti, muito contente com a arquitetura de S. Pedro.
Viajei pela - França; era no tempo do reinado de Luis, o justo. A primeira coisa que me perguntaram foi se eu não queria, para o almoço uma pequena porção do marechal d'Ancre, cuja carne o povo tinha assado e que vendiam modicamente a quem pedisse. Esse Estado era continuamente agitado de guerras civis, algumas por causa de um lugar no Conselho, outras vezes por duas páginas de controvérsia. Fazia mais de sessenta anos que aquele fogo, ora abafado, ora soprado com violência, desolava aqueles belos
climas. Eram as liberdades da igreja galicana. "No entanto - suspirava eu - esse povo nasceu tranquilo: quem pode tê-lo assim arrebatado a seu gênio? Ele diverte-se e faz S. Bartolomeus. Venturosos os dias em que não fizer mais que divertir-se!"
Passei para a Inglaterra: as mesmas querelas excitavam ali os mesmos furores, Santos católicos tinham resolvido, a bem da Igreja, fazer saltar pelos ares, a pólvora, o rei, a família real e todo o Parlamento, e livrar a Inglaterra de tais heréticos. Mostravam-me o local onde a bem-aventurada rainha Maria, filha de Henrique VIII, mandara queimar mais de quinhentos de seus súditos. Um padre assegurou-me que era uma belíssima ação: primeiro, porque aqueles a quem haviam queimado eram ingleses; em segundo lugar, porque nunca usavam água benta e não acreditavam no buraco de S. Patrício.
Espantava-se de que ainda não tivessem canonizado a rainha Maria; mas aguardava-o para breve, logo que o cardeal-sobrinho dispusesse de algum lazer.
Dirigi-me para a Holanda, onde esperava encontrar mais tranqüilidade em meio a um povo mais fleumático. Cortava-se a cabeça a um venerável ancião, quando desembarquei em Haia. Era a cabeça calva do primeiro ministro Barneveldt, o homem que mais merecera da República. Cheio de piedade, perguntei qual o seu crime e se havia traído o Estado. "Fez muito pior - respondeu-me um pregador de manto negro. - Esse homem acredita que a gente pode salvar-se pelas boas obras, tanto como pela fé.
Bem vê que, a vigorarem tais opiniões, não poderia uma república subsistir, e que há necessidade de leis severíssimas para reprimir esses escândalos". Um profundo político da terra disse-me a suspirar: "Ah! meu senhor, os bons tempos não durarão sempre; é só por acaso que este povo se mostra agora tão zeloso; o fundo de seu caráter é inclinado ao dogma abominável da tolerância; esse dia virá: é o que me faz tremer". Quanto a mim, enquanto não chegavam esses funestos dias da moderação e da indulgência, deixei mais que depressa um país onde a severidade não era suavizada por nenhum atrativo, e embarquei para a Espanha.
A Corte estava em Sevilha; os galeões tinham chegado; tudo respirava abundância e alegria na mais bela estação do ano. Ao fim de uma alameda de laranjeiras e limoeiros, vi uma espécie de pista imensa, cercada de gradis cobertos de preciosos tecidos. O rei, a rainha, os infantes, as infantas achavam-se acomodados sob um pálio soberbo. Fronteiro a essa augusta família, erguia-se um outro trono, mas muito mais elevado. Disse a um de meus companheiro, de viagem: "A não ser que esse trono seja reservado para Deus, não sei a quem possa servir..." Essas indiscretas palavras foram ouvidas por um bravo

espanhol e me custaram bastante caro. Imaginava que fôssemos assistir a alguma cavalgada ou corrida de touro, quando o grande inquisidor surgiu naquele trono, de onde abençoou o rei e o povo. Em seguida entrou um exército de padres, em formação de dois, brancos, negros, cinzentos, calçados, descalços, com barba, sem barba, encapuzados, sem capuz; em seguida marchava o carrasco; depois, no meio dos alguazis e dos grandes, via-se cerca de quarenta pessoas vestidas de sacos, nos quais haviam pintado diabos e chamas. Eram judeus que não tinham querido renunciar a Moisés, cristãos que tinham
desposado as próprias comadres, ou que não haviam adorado a Nossa Senhora de Atocha, ou não quiseram desfazer-se de seus negócios em favor dos irmãos hieronimitas Cantaram devotamente belas orações. depois queimaram todos os culpados a fogo lento, com o que a família real pareceu extremamente edificada.
A noite, quando ia meter-me na cama, chegaram dois familiares da Inquisição com a santa Hermandad; beijaram-mo ternamente e levaram-me, sem dizer palavra, para um calabouço muito fresco, mobiliado de uma esteira e um belo crucifixo. Fiquei ali seis semanas, ao fim das quais o reverendo padre Inquisidor me mandou pedir que lhe fosse falar: estreitou-me algum tempo entre os braços, com uma afeição toda paternal; disse-me que se sentia sinceramente aflito por ter sabido que eu estava tão mal alojado; mas que todos os apartamentos da casa se achavam ocupados e esperava que, da próxima vez,
me sentisse mais a gosto. Em seguida perguntou-me cordialmente se eu não sabia por que estava lá.
Disse ao reverendo que provavelmente pelos meus pecados. "Pois bem, meu caro filho, por qual pecado?
Fala-me com toda a confiança". Por mais que procurasse, não pude adivinhar: ele caridosamente me auxiliou. Até que me lembrei das minhas indiscretas palavras, de que fui remido com disciplinas e uma multa de trinta mil reales. Levaram-me a saudar o grande inquisidor: era um homem polido, que me perguntou como tinha eu achado a sua festinha. Disse-lhe que achara uma coisa deliciosa, e fui instar com meus companheiros de viagem para que deixássemos aquele país, por mais belo que fosse. Tiveram
eles tempo de informar-se de todas as grandes coisas que os espanhóis haviam feito pela religião. Leram as memórias do famoso bispo de Chispa, das quais se depreende que haviam degolado ou queimado ou afogado dez milhões de infiéis na América, a fim de os converter. Achei que o bispo exagerava; mas, ainda que se reduzisse tal sacrifício a cinco milhões de vitimas, seria igualmente admirável.
Acossava-me ainda o desejo de viajar. Contava terminar minha excursão européia pela Turquia; pusemo-nos a caminho. Propus-me não mais dar opiniões sobre as festas a que assistisse. "Esses turcos - dizia eu a meus companheiros - são incréus, não foram batizados e, por conseguinte, hão de ser muito mais cruéis que os reverendos padres inquisidores. Guardemos silêncio quando estivermos entre os maometanos".
Fui, pois, ter com eles. Muito me espantei ao ver que na Turquia havia mais igrejas cristãs que em Cândia. Vi até numerosos grupos de monges, a quem deixavam rezar livremente à Virgem Maria e
amaldiçoar a Maomé, estes em grego, aqueles em latim, outros em armênio. "Boa gente esses turcos!" - exclamei. Os cristãos gregos e os cristãos latinos eram inimigos mortais em Constantinopla; esses escravos perseguiam-se uns aos outros, como cães que se mordem na rua e a quem os donos separam a bastonaços. O grão-vizir protegia então os gregos. O patriarca grego acusou-me de haver ceado com o patriarca latino, e eu fui condenado, em pleno divã, a cem varadas na sola dos pés, resgatáveis por quinhentos sequins. No dia seguinte, o grão-vizir foi estrangulado; e, no outro dia, o seu sucessor, que era pelo partido dos latinos, e que só foi estrangulado um mês depois, me condenou à mesma multa, por ter ceado com o patriarca grego. Vi-me na triste emergência de não freqüentar nem a Igreja grega nem a latina. Para consolar-me, tomei a meu serviço uma bela circassiana, que era a mais carinhosa das criaturas na intimidade, e a mais devota na mesquita. Uma noite; nos doces transportes do seu amor, exclamou, beijando-me:. Alla, Illa, Alla; são as palavras sacramentais dos turcos: julguei que eram as do amor; exclamei também com toda a ternura: Alla, Illa, Alla. "Ah! louvado seja o Deus de misericórdia -disse-me ela. - Agora és turco". Disse-lhe que o bendizia por me haver dado a força de um turco, e julguei-me muito feliz. De manhã, chegou o imame para circuncidar-me; e, como eu relutasse, o cádi do bairro, homem leal, propôs que me empalassem: salvei o meu prepúcio e o meu traseiro com mil sequins, e fugi sem tardança para a Pérsia, resolvido a não mais ouvir missa grega nem latina na Turquia, e a nunca mais gritar: Alla, Illa, Alla em um encontro amoroso.
Chegado a Ispaão, perguntaram-me se eu era pelo carneiro preto ou pelo carneiro branco. Respondi que isso me era indiferente, desde que o carneiro fosse macio. Cumpre saber que as facções do Carneiro Branco e do Carneiro Preto ainda dividiam os persas. Julgaram que eu zombava dos dois partidos, de sorte que, já às portas da cidade, me vi envolvido numa violenta rixa: custou-me ainda inúmeros sequins para desembaraçar-me dos carneiros.
Fui até à China com um intérprete, que me assegurou ser esse o país onde se vivia alegre e livremente. Os tártaros agora o governavam, depois de haver . submetido tudo a ferro e fogo; e os reverendos padres jesuítas de uma parte, como os reverendos padres dominicanos da outra, diziam que ali pescavam almas para Deus, sem que ninguém o soubesse. Jamais se viram conversores tão zelosos: pois viviam a perseguir-se mutuamente; escreviam para Roma volumes e volumes de calúnias; tratavam-se de infiéis e de prevaricadores, por causa de uma alma. Havia principalmente uma horrível disputa entre eles, sobre a maneira de fazer a reverência. Queriam os jesuítas que os chineses saudassem a seus pais e mães à moda da China, e os dominicanos queriam que os saudassem à moda de Roma. Aconteceu-me ser tomado pelos jesuítas por um dominicano. Fizeram-me passar aos olhos de sua Majestade tártara por espião do Papa. O conselho supremo encarregou um primeiro mandarim, o qual deu ordem a um sargento, o qual mandou quatro esbirros do país efetuar a minha prisão e atar-me com todo o cerimonial. Fui conduzido, após cento e quarenta genuflexões, perante Sua Majestade. Fez-me perguntar se eu era espião do Papa e se era verdade que esse príncipe viria em pessoa destroná-lo. Respondi que o Papa era um sacerdote de setenta anos; que residia a quatro mil léguas de Sua Majestade tártaro-chinesa; que tinha cerca de dois mil soldados que montavam guarda com um parassol; que não destronava a ninguém, e que Sua Majestade podia dormir em paz. Foi a aventura menos funesta da minha vida. Enviaram-me para Macau, de onde embarquei rumo à Europa.
Meu navio teve necessidade de ser reparado no litoral de Golconda. Aproveitei esse tempo para ir visitar a Corte do Grande Aureng-Zeb, de quem diziam maravilhas. Achava-se ele em Delí. Tive o consolo de o fitar no dia da pomposa cerimônia durante a qual recebeu o celestial presente que lhe enviava o xerife de Meca. Era a vassoura com que haviam varrido a casa santa, a Caaba, a Beth Allah.
Essa vassoura é o símbolo que varre todas as impurezas da alma. Aureng-Zeb não parecia ter necessidade desse objeto; era o homem mais piedoso de todo o Indostão. É verdade que degolara um de seus irmãos e envenenara o próprio pai. Vinte rayas e outros tantos omrahs haviam sido mortos em suplícios; mas isso não era nada, e só se falava da devoção de Aureng-Zeb. Não o comparavam senão à Sagrada Majestade do Sereníssimo Imperador de Marrocos, Muley-lsmael, que mandava cortar cabeças todas as sextas-feiras, após a oração.Quanto a mim, não dizia uma única palavra; as viagens me haviam formado o espírito, e eu achava que não me competia decidir entre esses dois augustos soberanos. Mas devo confessar que um jovem francês meu companheiro faltou com o respeito ao imperador das Índias e ao de Marrocos. Ocorreu-lhe dizer que havia na Europa soberanos muito piedosos que governavam bem os seus Estados, e até freqüentavam as igrejas, sem no entanto matar a seus pais e irmãos, nem degolar seus súditos. O nosso intérprete transmitiu em hindu as ímpias expressões de meu jovem amigo. Com a experiência do
passado, fiz logo selarem os nossos camelos e partimos, o francês e eu. Soube depois que, na mesma noite, os oficiais do grande Aureng-Zeb tinham ido prender-nos e só encontraram o intérprete.
Executaram-no em praça pública, e todos os cortesãos confessaram, sem lisonja, que a sua morte fora muito justa.
Restava-me ver a África, para gozar de todos os encantos de nosso continente. Vi-a, com efeito. Meu navio foi apresado por corsários negros. Nosso capitão fez veementes protestos; perguntou-lhes por que violavam assim as leis internacionais. "Vocês têm nariz comprido - respondeu-lhe o capitão negro - e o nosso é chato; seus cabelos são lisos, o nosso é encarapinhado; vocês têm pele cor de cinza, e nós cor de ébano; devemos, pois, pelas leis sagradas da natureza, ser sempre inimigos. Vocês nos compram, nas feiras da costa de Guiné, como a animais de carga, para nos obrigar a trabalhar em não sei que serviços tão penosos como ridículos Fazem-nos cavar as montanhas, a golpes de nervo de boi, para extrair uma espécie de terra amarela que, por si mesma, não presta para nada, e que não vale uma boa cebola do Egito. De maneira que, quando nós os encontramos e somos os mais fortes, logo escravizamos vocês todos e os obrigamos a lavrar nossos campos, ou então lhes cortamos o nariz e as orelhas."
Nada tínhamos que replicar a tão sábias palavras. Fui lavrar o campo de uma negra velha, para conservar minhas orelhas e meu nariz. Resgataram-me ao fim de um ano. Vira tudo o que há de belo, de bom e de admirável sobre a face do globo: resolvi não ver mais que os meus penates. Casei-me na minha terra; ganhei um par de ornamentos, e vi que era esse o estado mais tranquilo da vida.

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