27 de ago. de 2012

CASAL DE TRÊS



          O sogro era um santo e patusco cidadão. Assim que o viu arremessou-se, de braços abertos:
            Como vai essa figura? Bem?
          Filadelfo abraçou e deixou-se abraçar. E rosnou, lúgubre:
            Essa figura vai mal. Espanto do sogro:
            Por que, carambolas? — E insistia: — Vai mal por quê? Caminhando pela calçada, lado a lado com o velho bom
e barrigudo, Filadelfo foi enumerando as suas provações, só comparáveis às de Job:
            É o gênio de sua filha. Sou desacatado, a três por dois. Qualquer dia apanho na cara!
          Dr. Magarão assentiu, grave e consternado:
            Compreendo, compreendo. — Suspira, admitindo: — Puxou à mãe. Gênio igualzinho. A mãe também é assim!
Súbito, Filadelfo estaca. Põe a mão no ombro do outro; interpela-o:
            Quero que o senhor me responda o seguinte: isso está certo? É direito?
          O velho engasga:
            Bem. Direito, propriamente, não sei. — Medita e pergunta: — Você quer uma opinião sincera? Batata? Quer?
            Quero. E o sogro:
            Então, vamos tomar qualquer coisa ali adiante. Vou te dizer umas coisas que todo homem casado devia saber.

          TEORIA
          Entram num pequeno bar, ocupam uma mesa discreta. Enquanto o garçon vai e vem, com uma cerveja e dois copos, dr. Magarão comenta:
            Você sabe que eu sou casado, claro. Muito bem. E, além da minha experiência, vejo a dos outros. Descobri que toda mulher honesta é assim mesmo.
          Espanto de Filadelfo:
            Assim como? O gordo continua:
            Como minha filha. Sem tirar, nem pôr. Você, meu caro, desconfie da esposa amável, da esposa cordial, gentil. A virtude é triste, azeda e neurastênica.
          Filadelfo recua na cadeira:
            Tem dó! Essa não! — E repetia, de olhos esbugalhados, lambendo a espuma da cerveja:
          — Essa, não!
          Mas o sogro insistiu. Pergunta:
            Sabe qual foi a esposa mais amável que eu já vi na minha vida? Sabe? Foi uma que traía o marido com a metade do Rio de Janeiro, inclusive comigo! — Espalmou a mão no próprio peito, numa feroz satisfação retrospectiva:                    — Também comigo! E tratava o marido assim, na palma da mão!
          Uma hora depois, saíam os dois do pequeno bar. Dr. Magarão, com sua barriga de ópera-bufa e bêbado, trovejava:
            Você deve se dar por muito satisfeito! Deve lamber os dedos! Dar graças a Deus!
          O genro, com as pernas bambas, o olho injetado, resmunga:
            Vou tratar disso!

          O DESGRAÇADO
          Não mentira ao sogro. Sua vida conjugai era, de fato, de uma melancolia tremenda. Descontado o período da lua-de-mel, que ele estimava em oito dias, nunca mais fora bem tratado. Sofria as mais graves desconsiderações, inclusive na frente de visitas. E, certa vez, durante um jantar com outras pessoas, ela o fulmina, com a seguinte observação, em voz altíssima:
          — Vê se para de mastigar a dentadura, sim?
Houve um constrangimento universal. O pobre do marido, assim desfeiteado, só faltou atirar-se pela janela mais próxima. Após três anos de experiência matrimonial, ele já não esperava mais nada da mulher, senão outros desacatos. E só não compreendia que Jupira, amabilíssima com todo mundo, fizesse uma exceção para ele, que era, justamente, o marido. Depois de ter deixado o sogro, voltou para casa desesperado. Chega, abre a porta, sobe a escada e quando entra no quarto recebe a intimação:
            Não acende a luz!
          Obedeceu. Tirou a roupa no escuro e, depois, andou caçando o pijama, como um cego. E quando, afinal, pôde deitar-se, fez uma reflexão melancólica: há dez meses ou mesmo um ano que o beijo na boca fora suprimido entre os dois. O máximo que ele, intimidado, se permitia, era roçar com os lábios a face da esposa. Se queria ser carinhoso demais, ela o desiludia: "Na boca não! Não quero!". Outra coisa que o amargurava era o seguinte: a negligência da mulher no lar. Não se enfeitava, não se perfumava. Deitado ao seu lado, ele pensava agora, lembran-do-se da teoria do sogro:
          — "Será que a esposa honesta também precisa cheirar mal?".
          MUDANÇA
          Um mês depois, ele chega em casa, do trabalho, e acontece uma coisa sem precedentes: a mulher, pintada, perfumada, se atira nos seus braços. Foi uma surpresa tão violenta que Fila-delfo perde o equilíbrio e quase cai. Em seguida, ela aperta entre as mãos o seu rosto e o beija na boca, num arrebatamento de namorada, de noiva ou de esposa em lua-de-mel. Ele apanha o jornal, que deixara cair. Maravilhado, pergunta:
            Mas que é isso? Que foi que houve? Jupira responde com outra pergunta:
            Não gostou? Ele senta, confuso:
            Gostar, gostei, mas... — Ri: — Você não é assim, você não me beija nunca.
Jupira tem um gesto de uma petulância que o delicia: vem sentar-se no seu colo, encosta o rosto no dele. Filadelfo é acariciado. Acaba perguntando:
            Explica este mistério. Aconteceu alguma coisa. Aconteceu?
          Ela suspira:
            Mudei, ora!

          SOFRIMENTO
          A princípio, Filadelfo conjeturou: "É hoje só". No dia seguinte, porém, houve a mesma coisa. Ele cocava a cabeça: "Aqui há dente de coelho!". Coincidiu que, por essa ocasião, os seus sogros aparecessem para jantar. Dr. Magarão, enquanto a mulher conversava com a filha, levou o genro para a janela: "Como é? Como vai o negócio aqui?".
          Filadelfo exclama:
            Estou besta! Estou com a minha cara no chão! O velho empina a barriga de ópera-bufa:
            Por quê? E o genro:
            Tivemos aquela conversa. Pois bem. Jupira mudou. Está uma seda; e me trata que só o senhor vendo!
          Ao lado, mascando o charuto apagado, o velho balança a cabeça:
            Ótimo!
            O negócio está tão bom, tão gostoso, que eu já começo a desconfiar!
          O sogro põe-lhe as duas mãos nos ombros:
            Queres um conselho? De mãe pra filho? Não desconfia de nada, rapaz. Te custa ser cego? Olha! O marido não deve ser o último a saber, compreendeu? O marido não deve saber nunca!

          LUA-DE-MEL
          Seguindo a sugestão do sogro, ele não quis investigar as causas da mudança da esposa. Tratou de extrair o máximo possível da situação, tanto mais que passara a viver num regime de lua-de-mel. Dias depois, porém, recebe uma minuciosíssima carta anônima, com dados, nomes, endereços, duma imensa verossimilhança. O missivista desconhecido começava assim: "Tua mulher e o Cunha...". O Cunha era, talvez, o seu maior amigo e jantava três vezes por semana ou, no mínimo, duas, com o casal. A carta anônima dava até o número do edifício e o andar do apartamento em Copacabana onde os amantes se encontravam. Filadelfo lê aquilo, relê e rasga, em mil pedacinhos, o papel indecoroso. Pensa no Cunha, que é solteiro, simpático, quase bonito e tem bons dentes. Uma conclusão se impõe: sua felicidade conjugai, na última fase, é feita à base do Cunha. Filadelfo continuou sua vida, sem se dar por achado, tanto mais que Jupira revivia, agora, os momentos áureos da lua-de-mel. Certa vez jantavam os três, quando cai o guardanapo de Filadelfo. Este abaixa-se para apanhar e vê, insofismavelmente, debaixo da mesa, os pés da mulher e do Cunha, numa fusão nupcial, uns por cima dos outros. Passa-se o tempo e Filadelfo recebe a notícia: o Cunha ficara noivo! Vai para casa, preocupadíssimo. E, lá, encontra a mulher de bruços, na cama, aos soluços. Num desespero obtuso, ela diz e repete:
            Eu quero morrer! Eu quero morrer!
Filadelfo olhou só: não fez nenhum comentário. Vai numa gaveta, apanha o revólver e sai à procura do outro. Quando o encontra, cria o dilema:
            Ou você desmancha esse noivado ou dou-lhe um tiro na boca, seu cachorro!
No dia seguinte, o apavorado Cunha escreve uma carta ao futuro sogro, dando o dito por não dito. À noite, comparecia, escabreado, para jantar com o casal. E, então, à mesa, Filadelfo vira-se para o amigo e decide:
            Você, agora, vem jantar aqui todas as noites! Quando o Cunha saiu, passada a meia-noite, Jupira atira-se
nos braços do marido:
            Você é um amor!

A ESBOFETEADA



          Virou-se para as coleguinhas:
            Como meu namorado, eu confesso francamente: nunca vi! Tem um gênio! Que gênio!
          Indagaram:
            Feroz? E Ismênia:
            Se é feroz? Puxa! Precisa uns dez para segurar! — Olha para os lados e baixa a voz: — Vocês sabem o que é que ele fez comigo? Não sabem?
            Conta! Ah, conta!
          Ismênia não queria outra coisa. Cercada de amigas interes-sadíssimas, resumiu o episódio.-
            Foi o seguinte: ele cismou que eu tinha dado pelota para o Nemésio. E não conversou: me sentou a mão, direitinho!
            E tu?
          Ergueu o rosto, feliz, envaidecida da bofetada:
            Eu vi estrelas!
          Houve um silêncio e, ao mesmo tempo, um arrepio intenso naquelas meninas. Pareciam ter despeito, inveja, da agressão que a outra sofrerá. Ismênia piscou o olho:
  Eu gosto de homem, homem. Escreveu, não leu, o pau comeu. Senão, não tem graça. Sou assim.

          O VIOLENTO
          Chamava-se Sinval, o namorado de Ismênia. A primeira vista, causava até má impressão. Faltava-lhe a base física da coragem. Era baixo, mirrado, um peito fundo de tísico, braços finos e mãos pequenas, de unhas tratadas. Custava a crer que esse fraco fosse um violento. Todavia, estava lá o testemunho de Ismênia, que, batendo no peito, repetia: "Eu apanhei! Eu!". Acontece que entre as colegas presentes estava Silene, amiga e confidente de Ismênia. E Silene foi justamente a que se impressionou mais com o episódio. Conhecia vagamente Sinval e a sensação que ficara, de sua figura, foi a de um rapaz como há milhares, como há talvez milhões. De repente sabe que esse cavalheiro, de aparência tão insignificante, bate em mulheres. Sem dizer nada a ninguém, experimenta uma crispação de asco e deslumbramento. Mais tarde, em casa, com a mãe e as irmãs, diz o seguinte:
            Eu acho que, se um homem me esbofeteasse, eu dava-lhe um tiro na boca!

          A DOCE PEQUENA
          Mentira. Não daria tiro na boca de ninguém. Impossível desejar-se uma alma mais doce, terna e tão incapaz de violência, de maldade. Mesmo sua exaltação fazia pensar na cólera de um passarinho. Durante três dias, não pensou noutra coisa. E pasmava que Ismênia se vangloriasse da bofetada, como se de uma medalha, uma condecoração. No quarto dia, não resiste. Apanha o telefone e liga para o emprego do Sinval. Queria apenas passar um trote, e nada mais. Do outro lado da linha, porém, Sinval, caridoso, mas irredutível, exigia:
            Se não disser o nome, eu desligo.
          Ia recuar. Mas deu, nela, uma coragem súbita. Identificou-se: "Sou eu, Silene". Arrependeu-se imediatamente depois de ter dito. Tarde, porém. E já Sinval, transfigurado, exclamava:
            Silene? Não é possível, não pode ser!
            Sou, sim. E ele:
            Então houve transmissão de pensamento! No duro que houve! Imagine que eu estava pensando em você, neste minuto! Agora mesmo!
          Foi por aí além. Transpirando de sinceridade, contou que gostava dela em silêncio, há muito tempo. Com o coração disparado, a pequena indaga: "E Ismênia?". Foi quase brutal:
            Ismênia é uma brincadeira, um passatempo, nada mais. Você, não. Você é outra coisa. Diferente!
          Espantada com essa veemência, Silene quis duvidar. Então, emocionado, ele dramatiza:
            Te juro, pela minha mãe, que é a coisa que mais prezo na vida. Te juro que é pura verdade!

          DRAMA
          Silene despediu-se, afinal, com as pernas bambas. O sim pies fato de ter ligado já a envergonhara como uma deslealdade. Afinal, era amiga de Ismênia e... Pior do que tudo, porém, fora identificar-se. Durante o resto do dia, não fez outra coisa senão perguntar, de si para si: "E agora, meu Deus?". No telc fone, aceitara o convite de Sinval para um encontro no dia se guinte. Mas o sentimento de culpa não a largou, senão no mi i mento em que decidiu: "Não vou, pronto. Não vou e está acabado". Mas foi. No dia seguinte, pontualmente, estava no loca! combinado, transida de vergonha. Sinval, num interesse evidente, profundo, foi ainda mais decisivo do que na véspera. Disse coisas deslumbrantes, inclusive, textualmente, o seguinte:
            Te vi, no máximo, umas oito vezes, dez, talvez. Falei contigo pouquíssimo. Mas, assim ou assado, o fato é que te amo, te amo e te amo!

          APAIXONADA
          Ela acreditou. E acreditou porque se passara o mesmo com seu coração. Apaixonara-se, de uma dessas paixões definitivas, reais e mortais. Continuou a encontrar-se com o ser amado, ;ls escondidas. Só não era mais feliz porque pensava na outra. I )c noite, no quarto, especulava:' 'No dia em que Ismênia souber.
          Chegou esse dia. E foi, entre as duas, uma cena desagrada bilíssíma. Sem papas na língua, Ismênia disse-lhe as últimas: "Tu és mais falsa do que Judas!". Branca, o lábio inferior tremendo, Silene sentia-se incapaz de uma reação. A outra terminou, nu ma espécie de maldição:
            Hás de apanhar muito nessa cara!

          CIÚMES
          O incidente foi lamentável por um lado e bom por outro. Lamentável, pelo escândalo, pelo constrangimento. Bom, porque esclareceu de vez a situação. Excluída Ismênia, oficializou-K o romance. Os dois puderam exibir, ostentar, em toda a parte, "imenso carinho em que se consumiam. Começaram a frequentar festas. E, então, surpresa e vagamente inquieta, Silene descobriu o seguinte: Sinval não se incomodava que ela dançasse com indo mundo. Estranhou e passou a interpelar o namorado:
            Você não tem ciúmes de mim?
            Não. Admirou-se:
            Por quê? E ele:
            Porque te amo.
          Devia dar-se por satisfeita. E, no entanto, sua reação foi outra: estava descontente. Dias depois, suspira: "Eu preferia que i nesses ciúmes de mim". Sinval achou graça: "Ué!". Ela, sentindo-se irremediavelmente infantil, repete o que já ouvira, não sei onde: "Sem ciúmes, não há amor!". O rapaz passou-lhe um sermão: "Parece criança!". Até que, certa vez, a garota resolve ii mais longe. Pergunta ousadamente: "E se eu te traísse? Tu falas o quê?". Respondeu, sóbrio:
            Te perdoaria.
            E se eu voltasse a trair? Foi absoluto:
            Se continuasses traindo, eu continuaria perdoando.

          DESFECHO
          Mas este diálogo, imprudente, perturbador, deveria marcá-la e muito. A partir de então, foi outra alma, outra mulher. Era uma menina de modos suaves e bonitos. E, subitamente, passou a chamar a atenção de todo mundo, com atitudes desagráveis, de escândalo. Nas festas, dançava com o rosto colado; E houve um baile em que bebeu tanto que teve que ser carregada, em estado de coma. Por outro lado, torturava o pobre Sinval, desacatando-o na frente de todo mundo. Ele, serenamente, com uma mesura à Luís xv, submetia-se às piores desconsiderações, incapaz de um revide. Até que, numa festa, ela se cansou desse inofensivo. Na sua cólera, humilhou-o:
            Você não é homem! Se fosse homem, eu não faria de gato e sapato!
          Ela bebera, outra vez, além da conta. Talvez por isso ou por outro motivo qualquer, Sinval limitou-se a sugerir: "Vamos, meu anjo?". Mas em casa, sozinha, ela imergia numa ardente meditação. Uma noite, vão a uma outra festa. E lá Silene superou todas as leviandades anteriores. Quase à meia-noite, de braço com o par acidental, vai para o jardim. Sinval espera vinte minutos, meia hora, uma hora. E não se contém mais: vai procurá-la. O par, assim que o viu, pigarreou, levantou-se e desapareceu. Silene ergueu-se também. Com um meio sorriso maligno, anuncia: "Ele me beijou". Sinval não disse uma palavra: derruba a noiva com uma tremenda bofetada. Ela cai longe, com os lábios sangrando. Enquanto ele a contempla e espera, a pequena, de rastros, com a boca torcida, aproxima-se. Está a seus pés. E, súbito, abraça-se às suas pernas, soluçando:
          — Esperei tanto por essa bofetada! Agora eu sei que tu me amas e agora eu sei que posso te amar!
          Passou. Mas nos seus momentos de carinho, e quanto estavam a sós, ela pedia, transfigurada: "Me bate, anda! Me bate!". Foram felicíssimos.

6 de ago. de 2012

A terceira margem do rio


A Terceira Margem do Rio

(Guimarães Rosa – do livro:Primeiras Estórias)
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.




Vídeos sobre Maquiavel

Segue abaixo quatro vídeos produzidos pela FACHA abordando as contribuições de Maquiavel.

Tema da Palestra: "A contemporaneidade do filósofo italiano Nicolau Maquiavel: sua concepção do Estado e as estratégias de conquista e manutenção do poder pelos governantes".
Expositores: Dr.Teoria Política Noéli Correia de Melo Sobrinho e 
                    Dr. José Eudes Alencar
              

     Maquiavel